Tony Goes

"Deus da Carnificina": uma ótima peça virou um filme regular

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A primeira vez que assisti a "Deus da Carnificina" no teatro foi em Londres, em abril de 2008. A escolha não foi difícil, apesar das milhares opções em cartaz na cidade. A autora é a franco-iraniana Yasmina Reza, de quem eu já tinha visto a excelente "Arte" (que no Brasil foi montada com Paulo Goulart, Paulo Gorgulho e Pedro Paulo Rangel). E o nome de Ralph Fiennes no elenco funcionou como um chamariz definitivo: quem resiste a ver no palco uma estrela de cinema?

Minha escolha foi certeira. Adorei a peça, do cenário minimalista aos quatro atores formidáveis (um deles era Janet McTeer, indicada ao Oscar de coadjuvante este ano por "Albert Nobbs"). Mas o melhor mesmo era o texto ferino e revelador. A partir de uma situação mais ou menos corriqueira - dois casais que se reúnem para acertar as contas, depois do filho de 11 anos de um deles quebrar os dentes do filho do outro com um pedaço de pau - Yasmina Reza descasca o verniz de civilização que nos envolve, expondo os selvagens que ainda somos.

Alguns dias depois eu estava em Paris, também procurando uma peça para assistir. E não resisti: fui ver a montagem original de "Deus da Carnificina", dirgida pela própria autora e estrelada por ninguém menos que Isabelle Huppert. Não sei se eu fui contaminado pelo impacto da primeira vez, mas a versão londrina me pareceu mais ágil e engraçada. Mesmo assim, saí encantado do teatro, com a certeza de ter presenciado uma deusa em cena e um dos melhores textos do começo do século 21.

Logo "Deus da Carnificina" se tornou um sucesso internacional, ganhando montagens pelo mundo inteiro. E não demorou a chegar ao Brasil: estreou no Rio de Janeiro em setembro de 2010, com Débora Evelyn, Julia Lemmertz, Paulo Betti e Orã Figueiredo, sob a direção de Emilio de Mello. Gostei muito dos atores, mas não do cenário: uma mesa gigantesca ocupava grande parte do palco, escondendo a ação.

Ano passado estava eu em Buenos Aires, e adivinha o que fui ver no teatro? Pois é: "Deus da Carnficina" pela quarta vez, num quarto idioma. E detestei. A versão portenha enchia o roteiro de cacos, tirava o foco da trama e descambava num pastelão grotesco. O público rolava de rir, mas eu me senti ultrajado.

É claro que eu estava curioso para ver como esta peça incrível se traduziria para o cinema. A história toda se desenrola em uma hora e meia, num único lugar. Será que um diretor do nível de Roman Polanski conseguiria superar os limites do palco e fazer um filme "de verdade"?

Mais ou menos. "Carnage" (ele limou o "God" do título original, restituído pelo exibidor brasileiro) faz o que pode, mas não chega lá. A decupagem é fantástica e a câmera está sempre no lugar certo. Os atores também são fabulosos: só Jodie Foster fica um pouco aquém, pois faz de sua personagem uma chata de galochas e fica difícil para o espectador se identificar com ela.

Mas o final do filme é algo abrupto, enquanto que a peça terminava numa nota melancólica. E a discussão entre os casais, que parecia tão grandiosa em carne e osso, soa como picuinha na telona.

Talvez eu já tenha visto "Deus da Carnificina" vezes demais. Quem nunca teve contato com o texto pode se surpreender com o filme, que, de toda maneira, merece ser visto. Como, aliás, qualquer coisa que tenha Kate Winslet no elenco.

Crédito: Divulgação Jodie Foster e John C. Reilly em cena de "Deus da Carnificina", de Roman Polanski
Jodie Foster e John C. Reilly em cena de "Deus da Carnificina", de Roman Polanski

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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