O que li, ouvi e assisti nessas últimas semanas
A rapper Doechii, vencedora do Grammy; Amy Adams em 'Canina' e o novo livro de Naomi Klein me deram certeza de que a vida presta
No momento em que você lê essa coluna, os últimos bloquinhos carnavalescos vão encerrando suas derradeiras procissões pelas ruas das mais diversas cidades de nosso país (menos a minha Porto Alegre, mas isso já é outro assunto).
Esse ano a folia de Momo teve um gostinho especial, com a enorme expectativa em torno do Oscar que, todo mundo achava, seria arrebatado pela maravilhosa Fernanda Torres. Apesar de ter perdido o prêmio para Mikey Madison, "Ainda Estou Aqui" venceu na categoria melhor filme internacional, trazendo a mais famosa estatueta do mundo do cinema para o Brasil pela primeira vez em 97 anos.
Abraçada pelo brasileiro, Fernanda Torres foi o grande acontecimento desse carnaval. Avistada pelos bloquinhos de norte a sul do país em máscaras, reproduções de memes e figurinos de personagens icônicas como Fátima, de Tapas e Beijos e Vani de Os Normais, ela também conseguiu a façanha de ser transformada em Boneco de Olinda, uma honraria carnavalesca que talvez só perca em dimensão para ser homenageado em enredo de escola de samba.
Completamente indicada, coletivamente premiada (junto com a equipe gigantesca que precisa se mobilizar para realizar um filme), Fernanda deu um temperinho extra ao carnaval de 2025, fazendo o Brasil lembrar que a vida presta. Que orgulho!
Contagiada pelo clima carnavalesco e turbinada pelo poder transformador da arte, a coluna de hoje desfila em bloquinhos culturais, um para cada obra que consumi recentemente e que me tocou de alguma maneira que achei que valia a pena compartilhar.
Música
Em dezembro do ano passado, vi que uma cantora que eu não conhecia, mas tinha um nome muito peculiar –Doechii– tinha gravado uma participação no Tiny Desk Concert, um programa muito divertido do YouTube da NPR, rádio pública dos Estados Unidos, onde artistas se apresentam numa salinha minúscula em meio a mesas, estantes e livros. Seu visual (ela é absolutamente deslumbrante) e sua voz (firme e marcante) me deixaram hipnotizada.
Depois de assistir ao show fui atrás da sua mixtape "Alligator Bites Never Heal", ouvi todas as faixas e pensei: ela tá pedindo pra estourar. E estourou mesmo. No comecinho de fevereiro, Doechii conquistou o Grammy de Melhor Álbum de Rap, desbancando figurões do gênero como Eminem para se tornar apenas a terceira mulher ao realizar esse feito na história da premiação (as outras duas são Lauryn Hill, junto com osFugees, em 1997, e Cardi B., em 2019). Ela merece.
O disco não é exatamente um disco, e sim uma "mixtape", um lançamento independente, sem o suporte de uma gravadora, de forma quase artesanal, o que deixa sua façanha ainda mais impressionante: ela é a primeira artista a ganhar nessa categoria com esse formato. Não é pouca coisa e é tudo merecido.
Com 19 faixas, a mixtape tem desde raps super agressivos até baladas aveludadas e sensuais, uma mistura louca de Kendrick Lamar com SZA (e pitadinhas de Kelela). Vale muito ficar de olho. Ela está apenas começando. Sua mixtape está disponível nas principais plataformas de streaming.
Filme
A mais brutal, sincera e verdadeira representação da maternidade que já vi em um filme: "Canina" (Nightbitch), estrelado por Amy Adams e dirigido Marielle Heller, que também adaptou ela mesma para o cinema uma versão do livro de Rachel Yoder.
Não é coincidência que todas as pessoas envolvidas com o cerne da coisa sejam mulheres. Um homem jamais seria capaz de alcançar todas as camadas e sutilezas que elas conseguem aqui. Aliás, fiquei curiosa para ler o livro também.
No filme, a personagem de Amy (que não tem nome, sendo chamada simplesmente de "mãe") é uma artista plástica que faz uma pausa em sua carreira para ter um filho. Com um marido ausente, ela vai ficando cada vez mais sobrecarregada com o dia a dia e começa a experimentar uma crise de identidade em múltiplos níveis, ressentindo-se de ter abandonado sua vocação e irritada por não gostar da companhia das outras mães.
De repente, ela começa a passar por uma série de mudanças físicas muito curiosas que, inicialmente, ela atribui à sua perimenopausa. Porém, no fim das contas, a realidade é que ela está se transformando num cachorro. Deixando de lado as metáforas visuais nada sutis (que fazem lembrar de A Substância), o filme tem ótimos diálogos e aciona diversos gatilhos de identificação com uma coisa muito profunda, íntima e incômoda que muitos (e muitas) desconhecem sobre o que é ser mãe. Está no Disney +.
Livro
Já pensou em dedicar sua vida inteira a militar por uma causa, se estabelecer como uma voz de respeito no debate e, de uma hora para a outra, as pessoas começarem a confundir você com uma outra pessoa —que é o seu exato oposto ideológico– só porque ela tem um nome parecido com o seu?
Pois foi exatamente o que aconteceu com a jornalista canadense Naomi Klein, uma intelectual de esquerda anticapitalista, ativista pelas causas sociais e ambientais. E olha que o nome da suposta suposta sósia nem é tão parecido assim: Naomi Wolf, também jornalista, norte-americana, mais conhecida pelo best-seller "O Mito da Beleza", publicado em 1991 e importantíssimo para o feminismo na década de 1990.
Ao longo dos anos, Wolf se converteu ao negacionismo e às teorias da conspiração, tornando-se referência para a extrema direita e tendo inclusive sido banida de redes sociais durante a pandemia de COVID-19 por se engajar fortemente em campanhas anti-vacina.
No livro "Doppelgänger", traduzido por Renato Marques e publicado pela Carambaia, Klein conta sua bizarra experiência e propõe uma série de reflexões sobre o submundo da desinformação nas redes sociais e das realidades paralelas que milhões de pessoas experimentam diariamente na internet. Assustador e necessário.
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