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Titi Müller

'Babygirl' segue martelando na minha cabeça (e em outras partes do corpo também)

Cenas de sexo conversam diretamente com algo que raramente vemos no cinema mainstream: o desejo feminino

Casal em momento íntimo
Harris Dickinson e Nicole Kidman em cena do filme 'Babygirl' - Niko Tavernise/Divulgação
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Esse texto contém spoilers sobre "Babygirl", um suspense erótico protagonizado por uma Nicole Kidman madura, dominante e sensual, que entrega uma poderosa atuação que lhe valeu uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz este ano (que ela, por sinal, perdeu para a nossa maravilhosa Fernanda Torres).

Confesso que li e ouvi tanto sobre ele nesses últimos dias que quase deixei esse bonde passar, mas... é irresistível demais, difícil não falar sobre um filme atrevido como esse. Tem tantas camadas e toca em tantos lugares e de tantas maneiras diferentes que segue martelando aqui na cabeça –e em outras partes do corpo também.

"Babygirl" foi escrito, dirigido e produzido pela holandesa Halina Reijn, dona de uma carreira impressionante no teatro, cinema e televisão em seu país natal, mas praticamente uma desconhecida em Hollywood. As escolhas da diretora para filmar as cenas de sexo conversam diretamente com algo que raramente vemos no cinema mais mainstream: o desejo feminino –de um ponto de vista feminino.

Toda a complexidade da coisa está ali, da vergonha do próprio corpo e das palavras até o medo do desconhecido e de perder o controle. São cenas carregadas de tensão (e tesão), cheias de climas e expectativa, nada explícitas, quase uma antipornografia, um contraponto à satisfação imediata do desejo, sem afeto ou profundidade.

"Babygirl" fala de um desejo subjetivo, de uma experiência interna, de sedução, de conexão emocional. O filme tem um ritmo gostoso, que vai te fervendo aos poucos, provocando continuamente. E ainda pesa a mão no simbolismo, com seus cães ferozes, blusas transparentes e copos de leite.

Ali estão todas as ambiguidades da vida de Romy (Nicole), CEO de uma empresa de robótica que carrega uma personalidade controladora, com uma vida aparentemente perfeita com o marido e filhas. Mas, secretamente, tem dentro de si desejos sexuais represados por uma vida inteira, a ponto de nunca ter tido um único orgasmo com o marido.

Tem vergonha de assumir que gosta de ser dominada, colocada em posição de submissão diante do parceiro. Para ela, isso soa como uma contravenção, uma armadilha para si mesma. É uma mulher que não abraça seus desejos por serem opostos ao que assumiu para a vida além da cama. São fetiches tratados como proibidos que, quando vemos sob a perspectiva masculina, não causam tanta estranheza.

Os "gostos peculiares" do protagonista de "Cinquenta Tons de Cinza" não ganham risos contidos na sala de cinema, por exemplo. É claro que tem o fator do etarismo, que adiciona mais camadas a esse bolo. Afinal, se o desejo feminino por si só já é um tabu, tudo fica mais nebuloso quando se trata de mulheres mais maduras.

Nos personagens masculinos, oscilam aparências de força e demonstrações de fraqueza. Pense no estagiário Samuel, interpretado pelo gostoso do Harris Dickinson, que domina um cão raivoso com a tranquilidade de um buda e acaba sendo descartado como se fosse uma bolinha de papel amassada; ou no marido Jacob (outro gato, vivido pelo Antonio Banderas), um homão famoso, diretor todo-poderoso ensaiando sua nova peça num teatro enorme que vira uma criança birrenta e chorona no momento em que Romy revela que teve um caso, em um diálogo quase cômico de tão real.

As personagens femininas não são exatamente heroínas, mas também não são vilãs. Romy se entrega aos seus desejos secretos num contexto muito delicado com o estagiário, mas nunca deixa de estar no controle, mesmo quando é dominada, ameaçada ou chantageada.

Me fez refletir sobre as nuances do que significa consentimento. O tempo todo está muito claro que é ela quem manda. Ela sempre aparece como protagonista, nunca vítima de suas escolhas ou das circunstâncias que a vida lhe impõe.

Esme, a assistente de Romy interpretada por Sophie Wilde, surge inicialmente como uma personagem doce, quase ingênua, mas acaba se mostrando fria e carreirista e parte para cima da chefe assim que percebe uma oportunidade de ascensão profissional.

Outra sutileza gostosa desse filme delicioso é como ele transita bem entre gêneros: vai de uma comédia leve –na sessão em que estive, a plateia riu diversas vezes, algumas em momentos um pouco estranhos, talvez mais por constrangimento– e um drama pesado. Tem sequências muito difíceis de assistir, diálogos duros. É um filme bem adulto, afinal.

O grande tema de "Babygirl" são os jogos de poder, que também são retratados de forma tremendamente ambígua na tela. Primeiro que as dinâmicas envolvem múltiplos personagens, em situações em que o poder troca de mão diversas vezes. Segundo que quase nunca dá para ter muita certeza sobre quem está com a vantagem. Quem domina e quem é dominado, quem está arriscando exatamente o que, quem tem mais ou menos a perder, quem não tem a menor ideia do que está fazendo.

Já que estamos em época de Oscar (para o qual "Babygirl", curiosamente, não emplacou nenhuma indicação), vou apelar para uma frase que supostamente é do Wilde: "Tudo nesse mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder". Acho que é bem por aí.

Um último comentário: genial a escolha de uma música chamada "Father Figure" para a cena mais icônica deste filme onde, claramente, é uma mother quem domina —e se deixa dominar.

Titi Müller

Titi Müller é apresentadora, podcaster, locutora, roteirista e turista profissional. Ex-VJ da MTV, é uma curiosa sobre cultura e comportamento humano

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