Marcelo Arantes

Incomodar-se com o afeto homossexual deveria fazer Ziraldo se perguntar por que

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ziraldo veio a público na última semana, em nome daqueles que considera fãs da atriz Fernanda Montenegro, para dizer que ela "não tem direito de fazer apologia do afeto homossexual" e que "grandes fãs dela estão estarrecidos com isso", em referência ao papel atual da atriz na TV, a advogada lésbica Tereza da novela 'Babilônia'.

Idealizar ídolos e superestimá-los é uma combinação que frequentemente vem seguida de decepções. Certamente Ziraldo se considera um grande fã de Fernanda, e pelo tom pessoal das declarações entrou na cota dos estarrecidos. Então é hora de ensiná-lo a lidar com a decepção.

Decepção gera um ciclo de negatividade e se não combatida, impede o sujeito de crescer. Para lidar com ela, existem duas armas principais: a aceitação da realidade e a flexibilidade de pensamento.

Crédito: Ricardo Borges/Folhapress Ziraldo
Ziraldo

Obviamente é mais fácil ensinar alguém a superar decepções a partir da infância, quando os conceitos sobre o mundo podem ainda ser remodelados. Este é, talvez, o segredo da juventude, conseguir mudar a visão de mundo apesar da idade. Ao que parece, aos 82 anos Ziraldo tem dificuldade neste aprendizado.

Em sua forma de ver o mundo, o cartunista entende que duas idosas homossexuais não podem viver um romance feliz e bem-sucedido. Ainda que tivesse saído de Caratinga, interior de Minas Gerais, e ganhado o mundo com tantos prêmios, suas experiências não foram capazes de libertá-lo de percepções distorcidas, e a escalação da grande dama da dramaturgia brasileira para o papel em questão veio como choque de realidade.

Ziraldo considera homossexualidade uma imperfeição. Numa entrevista recente ao jornal "Hoje em Dia", mencionou um beijo que recebeu do pai certa vez numa despedida: "Era para eu ter 'ficado viado' mesmo, sabe? Mas não aproveitei desta condição". Na mesma entrevista, disse que o afeto que recebia do pai levava as pessoas a estranharem a relação entre eles e que "Todo mundo achava que eu ia 'ficar viado'. E me chamavam de 'viadinho'".

Numa entrevista à Folha em 2011, Ziraldo defendeu que bullying é "importação dos americanos", e que todas as pessoas que conheceu de muito sucesso foram molestadas na escola. "Você vai arrumar proteção pro cara que se deixa ser sacaneado? Deixa ele se virar" disse, ignorando que o combate à agressividade na infância pode prevenir o ciclo da violência e a geração de adultos violentos.

Talvez o cartunista não se lembre, mas neste mesmo ano de 2011 um pai estava abraçado ao filho no interior de São Paulo e, confundidos com um casal homossexual, teve a orelha decepada por agressores.

Incomodar-se com o afeto homossexual deveria fazer Ziraldo se perguntar por que. A homossexualidade foi retirada há tempos do Catálogo Internacional de Doenças, e não foi a TV Globo que "hiperdimensionou o problema", como ele disse. A emissora apenas passou a tratar o assunto com a naturalidade que merece, mas que o cartunista desconhece.

No auge de sua maturidade artística aos 85 anos, Fernanda Montenegro tem total autonomia para escolher seus trabalhos. Se aceitou interpretar a lésbica Tereza, ela certamente acredita no papel do artista como agente transformador, capaz de disseminar representações simbólicas positivas contra o preconceito na formação da identidade cultural brasileira.

Sensível e amante das belas artes, é de se esperar que atriz tenha se entristecido com as declarações do autor de premiadas obras infantis como "O Menino Maluquinho"e "Flics". Mas Fernanda não envelhece. A intolerância de Ziraldo certamente lhe servirá de estímulo para que prossiga em direção aos seus objetivos rumo à transformação social. A decepção vira adubo para o crescimento de quem consegue enfrentá-la e aprender com ela.

Em seu primeiro livro infantil, "Flics", de 1969, Ziraldo abordou o preconceito ao contar a história de uma cor diferente que não tinha espaço no arco-íris e ninguém reconhecia seu valor. Aclamada como uma lição de respeito e tolerância, a obra parece infelizmente trazer outra mensagem no contexto das últimas declarações do autor.

Rejeitado em todo o planeta Terra, o frágil, feio, solitário e aflito Flics descobre finalmente ser capaz de viver feliz na Lua. Apenas na distância Ziraldo reserva lugar ao que é diferente.

Marcelo Arantes

Marcelo de Oliveira Arantes (@dr_marcelo_) é psiquiatra, mora em São Paulo e comenta o "BBB" há dez anos, desde que participou do "Big Brother Brasil 8". É autor de “A Antietiqueta dos Novos Famosos”.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem

Últimas Notícias