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Ana de Armas e Ben Affleck em cena do filme

Ana de Armas e Ben Affleck em cena do filme "Águas Profundas", de Adrian Lyne Divulgação

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Amanda Hess
The New York Times

Recentemente, aluguei uma casa no interior do estado de Nova York para um final de semana com um grupo de amigos, todos pais e mães de crianças pequenas, de menos de dois anos. Depois de colocarmos as crianças na cama, decidimos assistir em grupo a "Águas Profundas", no serviço de streaming Hulu (no Amazon Prime, no Brasil) –e passamos por 15 minutos de loucura, revirando a casa em busca do controle remoto perdido, jogando almofadas e livros de bebê de um lado para outro da sala.

O desespero todo era simplesmente pela oportunidade de nos sentirmos adultos, e pela vontade de experimentar uma forma agora rara de entretenimento para gente crescida: um thriller erótico dirigido pelo mestre do gênero, Adrian Lyne.

Infelizmente, "Águas Profundas" provou ser nem erótico nem um thriller. (É difícil explicar até que ponto a trama é idiota sem "spoilers", por isso estejam avisados.) Ben Affleck interpreta Vic, um sujeito que ficou rico fabricando "o chip" usado em drones matadores e que agora se ocupa com diversos hobbies soturnos, entre os quais cuidar de uma colônia de caracóis e editar uma revista de poesia.

Ana de Armas é sua mulher, Melinda, e o trabalho de sua vida parecer ser chifrar Vic constantemente com homens jovens e bonitos, uma atividade que ela mal tenta esconder de seu torturado marido (que talvez na verdade se excite um pouco com isso). O casal tem uma filha, a precoce Trixie (Grace Jenkins).

Não fica claro por que essas pessoas estão juntas ou por que Vic chega à conclusão de que a única saída é matar diversos dos pretendentes de Melinda em cenários aquáticos. A maior parte das cenas de sexo mostra o casal casado, e a química entre os dois é mais fraca do que a que Trixie demonstra em seus projetos escolares. Os caracóis, infelizmente, não aparecem muito. E as águas nem são assim tão profundas!

Adrian Lyne não fazia um filme há 20 anos, e agora ele voltou com nada a dizer. Seus cenários eróticos –comerciante de arte se envolve em romance com um executivo financeiro sadomasoquista ("9 ½ Semanas de Amor", 1987); bilionário paga US$ 1 milhão (R$ 5 milhões) a um sujeito para fazer sexo com sua mulher ("Proposta Indecente", 1993); e dona de casa trai o marido com um francês musculoso ("Infidelidade", 2002)– resultaram em filmes não necessariamente bons, mas que sempre tinham alguma coisa de interessante. As cenas de sexo nunca eram gratuitas, porque os filmes giravam totalmente em torno de sexo –usualmente sobre o quanto o sexo casual pode ser desastroso. Como diz um dos personagens de "Infidelidade", "um caso extraconjugal não é nada parecido com uma aula de cerâmica".

Parte da emoção de assistir de novo aos filmes antigos de Lyne é que a política sexual é a coisa mais perversa que existe neles. Ainda que os filmes se deliciem em suas cenas de sexo explícito, os valores que representam são essencialmente conservadores. E embora muitas vezes envolvam mulheres aparentemente perturbadas, eles são sobre homens –homens brancos.

Cada reviravolta afunda mais a trama em suas ansiedades masculinas. Na obra-prima de Lyne, "Atração Fatal", Michael Douglas interpreta Dan, um advogado que desfruta de uma vida familiar confortável –a mulher, o filho, o cachorro, a casa de campo– até que passa uma noite solitária na cidade e termina dormindo com Alex, uma editora de livros para solteiros interpretada por Glenn Close.

Embora Alex inicialmente pareça ser uma mulher independente, com propensões feministas, que está só à procura de diversão sem compromisso, ela logo é revelada como um monstro desesperado por aprisionar um homem e ter um filho com ele. Depois do caso, ela corta os pulsos, sabota o carro de Dan, sequestra sua filha e ferve o coelhinho da menina, e por fim chega à casa dele armada de uma faca, o que dá a Dan e sua mulher uma desculpa para matá-la –e ao bebê que ela carrega.

Trata-se de uma história de terror que gerou um discurso próprio: as pessoas falavam sobre Alex como se ela estivesse pronta a saltar das telas para perseguir os papais americanos. Douglas e Close terminaram na capa das revistas Time e People, que usaram o filme como pretexto para publicar artigos sobre "atrações fatais na vida real". Durante as viagens de divulgação do filme, Lyne criticava as mulheres "nada femininas" de Hollywood e elogiava sua "maravilhosa" cônjuge, descrevendo-a como "a pessoa menos ambiciosa que já conheci". Douglas disse que estava "realmente cansado das feministas, enjoado delas".

Se Alex representava a crescente ameaça feminista, Dan era o homem moderno que corria o risco de ser seduzido pela sexualidade dela e de ser degradado por sua posição política. O filme está repleto de ansiedade sobre a dureza das mulheres que buscam carreiras e sobre o abrandamento dos homens americanos. O erro de Dan não foi a infidelidade, mas a forma pela qual tratou Alex depois da noitada –os dois passearam juntos com o cachorro dela, ele atendeu seus telefonemas e a consolou quando ela tentou o suicídio. A lição final de "Atração Fatal" não era a de que os homens não deveriam trair suas mulheres, e sim a de que, quando o fizessem, não tratassem a outra mulher de um jeito decente.

"Atração Fatal" era um documento tão reacionário que se tornou peça central de "Backlash", o relato de Susan Faludi sobre o ataque político e cultural que o feminismo sofreu na década de 1980. Mas agora as suposições que embasavam o filme passaram por tamanha reversão que o serviço de streaming Paramount+ vai lançar "Fatal Attraction" como uma série de TV repaginada que, como aponta o anúncio sobre a produção, "reimagina esse thriller psicossexual clássico" sob "a lente das atitudes modernas com relação a mulheres fortes, distúrbios de personalidade e controle coercivo". Alex está em alta, e Dan foi colocado permanentemente na coleira. A cultura pop está cansada desses caras, realmente enjoada deles. São mulheres como Alex que estão em alta.

É raro, hoje, que um filme erótico seja assunto de conversa. O sexo nas telas e as dinâmicas conturbadas de relacionamentos migraram, agora, para séries de televisão como "You" e "Euphoria". Os heróis que restam nos filmes eróticos de Hollywood se parecem cada vez menos com Dan, defensor de sua família, e cada vez mais com os strippers sensíveis de "Magic Mike", que defendem seus corações ternos contra a mágoa. O último filme sobre sexo que dominou o discurso público, "50 Tons de Cinza", era "9 ½ Semanas de Amor" retomado como um romance para meninas absurdo –um caso extraconjugal que na verdade se parecia com uma aula de cerâmica.

Ainda que o galã sadomasoquista do filme, Christian Grey, sofra com demônios internos caricaturescos, ele continua a ser baseado no vampiro gostosão de "Crepúsculo", um monstro tão delicado que se recusa a sugar o sangue de seres humanos.

Em um ambiente antisséptico como esse, Affleck chega como um presentinho sacana. Se Douglas representava o homem de família em risco, na década de 1980, Affleck é a casca vazia daquele homem. Ele se transformou em uma celebridade carimbada, um pai divorciado que sempre termina apanhado pelos paparazzi em situações tristonhas: olhando melancolicamente para o mar, com uma toalha enrolada na cintura; tropeçando ao sair da loja e derrubando uma bandeja cheia de donuts. Depois de sua queda, a persona de Affleck parece ter ganhado dimensão mais humana, e a figura tristonha do ator retrata a ansiedade universal, temperada por uma emasculação estranhamente atraente.

Foi essa a dinâmica que funcionou tão bem para ele em "Garota Exemplar" (2014), um filme no qual uma femme fatale parece movida por indignação feminista justificada, se bem que insana. Amy (Rosamund Pike), encena a própria morte para inculpar seu marido infiel, Nick, interpretado por Affleck como um calhorda suarento que, e aí vem a reviravolta, na verdade não matou a mulher; "Águas Profundas" tenta reverter o truque, escalando Affleck como um sujeito aparentemente decente que na verdade é o assassino inesperado. Mas o filme interpreta incorretamente os atrativos de Affleck –o exterior dele, embora suspeito, oculta um sujeito fundamentalmente inofensivo, e não o contrário.

As entrevistas de divulgação de "Águas Profundas" apontam para um filme que não tem esperança de provocar qualquer discussão. O único participante que parece interessado em falar é Lyne, que representa uma figura de algum modo datada: o diretor homem e controlador que governa todo um filme com sua energia sexual. As excentricidades de Lyne como diretor foram bem documentadas, muitas vezes pelo próprio cineasta.

Em "Proposta Indecente", ele gritava encorajamentos vulgares para Demi Moore e Woody Harrelson quando eles estavam fazendo cenas de sexo simulado. Em "9 ½ Semanas de Amor", ele se vangloria de ter aterrorizado Kim Basinger em uma tentativa de causar um colapso psicológico real, estratégia que disse ser necessária porque Basinger "não lê livros; ela na verdade não sabe atuar".

Agora a cultura está pronta a reagir contra homens como ele. "As coisas agora são mais controladas", se queixou Lyne em uma postagem de mídia social sobre os códigos de produção posteriores ao #MeToo. Ele se irritou quando o estúdio apontou um coordenador de intimidade para "Águas Profundas": "Isso implica falta de confiança, o que eu desprezo".

Lyne não parece compreender o tempo em que vive, e isso fica aparente. "Águas Profundas" não tem âncora. O filme se baseia em um romance de Patricia Highsmith, de 1957 (o que ajuda a explicar por que Vic e Melinda se chamam Vic e Melinda), mas vem repleto de cenas luxuosas de sexo ao modo da década de 1980 e de citações ao uso de drones nas guerras atuais. Eu não esperava grande coisa –um playground cafona no qual Affleck pudesse mostrar sua meta-masculinidade e a enorme tatuagem que tem nas costas. Mas, desta vez, o sexo realmente era insignificante.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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