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Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Filmes

Quer ver suspense tão ousado quanto 'Psicose' no Halloween? Experimente 'A Tortura do Medo'

Crônica de Michael Powell influenciou Scorsese, Brian De Palma e Kathryn Bigelow

Janet Leigh em "Psicose" (1960)
Janet Leigh em "Psicose" (1960) - IMDb
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Ben Kenigsberg
The New York Times

Se eu tivesse a capacidade de apagar completamente minha memória sobre um filme, e de viajar em uma máquina do tempo para assisti-lo em sua primeira exibição, escolheria "Psicose" (1960). Imagino que muita gente faria a mesma escolha.

O objetivo não seria simplesmente recapturar a empolgação da primeira vez em que vi o filme, muito tempo atrás –eu me preparei para a cena do chuveiro mesmo que já soubesse o que esperar–, e sim chegar àquele momento completamente despreparado, sem saber que haveria uma cena do chuveiro e sem estar ciente da ousadia com que Alfred Hitchcock desafiaria as convenções narrativas.

Mas Hitchcock não foi o único diretor que lançou um filme em 1960 que estendeu os limites da ousadia ou da violência na tela, ou que tenha representado uma ruptura decisiva com relação a qualquer coisa que ele tivesse feito antes. "Peeping Tom" ["A Tortura do Medo"], de Michael Powell, também se qualifica e, de algumas maneiras, é ainda mais agressivo nas questões que propõe sobre o relacionamento entre a audiência e a tela.

Até ali, Powell vinha sendo um dos diretores de maior prestígio do cinema britânico, e o escândalo causado por "A Tortura do Medo" parece ter apressado o final de sua carreira no Reino Unido (ainda que haja quem argumente que as circunstâncias eram mais complexas). Imagine um "Psicose" contado primariamente da perspectiva do assassino e no qual o assassino, ele mesmo um cineasta, é equiparado em muitos momentos ao diretor do filme e ao espectador.

"A Tortura do Medo" teve influência duradoura sobre cineastas como Martin Scorsese, que desempenhou papel decisivo em sua redescoberta, e também sobre Brian De Palma e Kathryn Bigelow, cujo "Estranhos Prazeres" oferece sucedâneo de realidade virtual quanto à obsessão do protagonista em orquestrar um tipo específico de homicídio.

Mas a marca deixada por "A Tortura do Medo" na cultura com certeza é menor que a de "Psicose", e isso significa que, se você tiver sorte, pode experimentar o filme como novo, com todos os choques que ele contém chegando inesperadamente. (Mas para isso é preciso que deixe a leitura deste artigo para mais tarde.)

Powell não é um diretor fácil de enquadrar; não há como reduzir seus quase 50 anos na indústria cinematográfica a uma descrição telegráfica. Mas ele é mais conhecido pelo trabalho que realizou nas décadas de 1940 e 1950 com seu parceiro de produção, roteiro e direção Emeric Pressburger –especialmente por produções suntuosas em Technicolor como "Neste Mundo e no Outro" e "Os Sapatinhos Vermelhos", ambos excelentes pontos de partida para apreciar seu trabalho, em uma semana que não inclua o Halloween.

Mas a primeira sequência em "A Tortura do Medo" não se parece com coisa alguma na carreira precedente de Powell –e talvez com coisa alguma no cinema antes de filmes como "Halloween – A Noite do Terror", de John Carpenter, em 1978, que fizeram das cenas filmadas do ponto de vista do "serial killer" um espetáculo comum, duas décadas mais tarde.

Boa parte da sequência é vista com a retícula da câmera de cinema visível na tela, enquanto Mark (Carl Boehm), o homem que logo compreenderemos está lá para nos representar, contrata uma prostituta e a segue subindo uma escada até um quarto, gravando-a sem que ela perceba com a câmera Bell & Howell que ele carrega escondida sob o casaco.

Ao se aproximar da mulher, e enquanto uma luz cintila de relance sobre seu rosto, ouvimos um grito. Um corte leva a cena ao projetor na sala privativa de exibição de Mark, onde ele está assistindo ao filme que acabou de rodar. Ainda que as imagens em branco e preto registradas por Mark não tenham som, o piano da trilha sonora que as acompanha transforma a cena em algo parecido a um filme mudo clássico. Ser um voyeur, contemplar o terror e a excitação nos rostos alheios –esses são os ingredientes fundamentais do cinema.

Mark conhece em primeira mão o olhar de medo que deseja capturar. Como ele explicará a Helen (Anne Massey), sua vizinha do andar de baixo, ele cresceu sem privacidade. Seu pai (Powell em participação especial) o filmava continuamente; ele era cientista, e queria um registro completo do crescimento de seu filho. O pai também tinha interesse nas reações do sistema nervoso ao medo, e por isso procurava maneiras de assustar Mark enquanto o filmava. O que Mark não revela a Helen é que ele cultivou o mesmo interesse que seu pai, e o levou a extremos homicidas.

A dualidade de Mark –artista tímido e assassino secreto– se estende até mesmo às suas ocupações. Um de seus trabalhos é fotografar mulheres nuas em um espaço por sobre uma banca de jornais, onde as fotos são vendidas clandestinamente. (Mark nem de longe é a única pessoa que oculta violências, no filme. A primeira mulher que o vemos fotografando pede que ele posicione a câmera de forma a não mostrar as marcas deixadas em seu corpo por seu noivo.)

Um segundo trabalho, mais respeitável, é o de assistente de câmera em um estúdio de cinema, no qual, em uma cena irônica, o diretor enfrenta problemas para fazer com que uma atriz desmaie convincentemente, embora tenha um especialista em causar choque em sua equipe, sem o saber. Como apontaram alguns comentaristas, Powell não disfarça o sotaque alemão de Mark, que, entre os sotaques ingleses dos demais personagens, se torna simplesmente mais uma maneira de afetar nossa percepção sobre ele.

Powell sempre foi maximalista no que tange ao uso de cores e sombras, levando-as bem além dos limites do naturalismo e em direção a um reino abstrato e quase primal. Algumas das tomadas de "A Tortura do Medo" têm tantos matizes que é quase como se ele estivesse tentando capturar todas as cores do espectro. Mas mesmo as cenas mais calmas demonstram um uso deslumbrante e perturbador de cores complementares. Repare a maneira pela qual os casacos de Massey e Boehm foram combinados cuidadosamente à paleta decorativa do edifício em que vivem, quando eles saem juntos para uma noitada.

A peça central do filme –e outro uso deslumbrante de cores– é o segundo homicídio. Mark conspirou para manter uma substituta, Vivian (Moira Shearer), no estúdio depois do fim dos trabalhos do dia, oferecendo-lhe uma oportunidade de enfim atuar diante da câmera. Ela pergunta o que Mark deseja que ela interprete. Ele pede que ela imite estar assustada, com medo de morrer –o que não será difícil.

O suspense tem muito de Hitchcock: da mesma forma que o banho de Janet Leigh antes de ela ser morta acalma os espectadores, embora eles já estejam esperando o pior, Vivian é mostrada longamente, dançando ao som de jazz para se aquecer para sua grande cena de pavor. A sequência espelha de modo sombrio "Os Sapatinhos Vermelhos". Naquele filme, Shearer interpretava uma bailarina preparada para dançar até literalmente cair morta. Em "A Tortura do Medo", ela dança até morrer sem saber disso.

Em outra sequência digna de Hitchcock, enquanto Mark e Helen estão fora juntos, Powell corta de volta para o laboratório fotográfico no apartamento de Mark, onde um relógio tiquetaqueia enquanto o filme em que Mark registrou o assassinato de Vivian é revelado.

"A Tortura do Medo" chegou cedo durante uma onda de cinema que buscou desconstruir o meio e expor suas ferramentas. Mark é uma equipe de cinema de um homem só: operador de câmera, diretor, laboratorista e –de modo mais oblíquo– técnico de som. E embora o poder do filme como thriller puro perdure, ele também deixa aos espectadores uma implicação mais perturbadora: a de que nós, como espectadores que desejamos mais filmes e mais excitação, em algum nível torcemos pelo sucesso de Mark.

Tradução de Paulo Migliacci. 

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