'O Menino Azul': Como pintura do século 18 se tornou símbolo do orgulho gay
Poucos quadros tornaram-se ícone tão poderoso da identidade de gênero
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Uma fila com número recorde de visitantes formou-se em janeiro de 1922 no lado externo da Galeria Nacional, em Londres, mesmo com tempo chuvoso, para ver um único quadro: O Menino Azul, do artista britânico Thomas Gainsborough.
A obra de arte havia sido comprada no ano anterior por um colecionador norte-americano, e sua partida iminente levou 90 mil pessoas a dar uma última olhada no que a imprensa havia chamado de "a pintura mais bela do mundo".
Um artigo no jornal London Times defendeu que O Menino Azul exemplificava a "graça gentil e a postura serena de um povo que sabia que era um grande povo e não se envergonhava disso". Para a população em geral, o Menino Azul de Gainsborough era o protótipo da alta cultura e do nobre caráter britânico.
Em janeiro de 2022, o Menino Azul voltou para Londres depois de cem anos e está sendo novamente exibido na Galeria Nacional, onde ficará exposto por cinco meses. Mas quantos visitantes conhecem hoje em dia a longa caminhada da pintura como símbolo do orgulho gay?
Valerie Hedquist, professora de História da Arte da Universidade de Montana, nos Estados Unidos, escreveu extensamente sobre o quadro e seu papel como ícone da comunidade gay.
Em parte, esta é uma história de consequências imprevistas e de como os artistas perdem o controle das suas criações depois que elas entram para o imaginário coletivo.
Hedquist contou à BBC que, quando Thomas Gainsborough pintou O Menino Azul, em torno de 1770, "ele era mais uma obra de demonstração para exibir os seus talentos".
Acredita-se que o menino seja o sobrinho do artista, Gainsborough Dupont, em vestes aristocráticas do século 17, em homenagem a Sir Anthony van Dyck —um artista cujas técnicas e composições eram admiradas por Gainsborough.
Em 1770, a pose do Menino Azul teria sido interpretada pelas pessoas como nobre, sinalizando um exemplo de futuro marido e pai. Ele está de pé em posição de autoridade conhecida como contrapposto, muito utilizada na arte clássica.
O cotovelo saliente é outra pose muito empregada nos retratos da arte europeia, descrita pela historiadora Joaneath Spicer como "indicando essencialmente arrojo ou controle —e, portanto, o autodefinido papel masculino".
Mas, para Hedquist, a ideia de que o menino da pintura está vestindo uma fantasia e representando é fundamental para suas reavaliações posteriores. Segundo ela, "o Menino Azul é um convite à representação".
Esse processo começou no palco no século 19, com a representação do "Pequeno Menino Azul" em peças de teatro pantomimas, frequentemente vestido com as sedas, bermudas e colarinho de rendas do Menino Azul de Gainsborough. E esse personagem era frequentemente representado por atrizes.
Este, segundo Hedquist, foi o início da "feminização" do Menino Azul. "No final do século 19", explica ela, "as revistas ficaram repletas de ilustrações de meninas vestidas como o Menino Azul".
Em 1922 —ano em que a pintura de Gainsborough ganhou um novo lar nos Estados Unidos—, Cole Porter apresentou seu musical "Mayfair and Montmartre", com Nelly Taylor vestida como o Menino Azul surgindo teatralmente de uma moldura e cantando uma música chamada "Blue Boy Blues".
Marlene Dietrich também se vestiu como o Menino Azul para uma comédia teatral em 1927, enquanto Shirley Temple fez o mesmo para o filme "Curly Top" ("A Pequena Órfã", no Brasil) em 1935.
A pintura havia criado uma plataforma para ofuscar a identidade de gênero. O Menino Azul podia ser masculino ou feminino no mundo fluido das apresentações teatrais.
Para Hedquist, outra dimensão da história envolve o escritor irlandês e líder do Movimento Estético, Oscar Wilde. Wilde vestia-se com roupas extravagantes com inspiração histórica, frequentemente com bermudas, casacos de veludo, mantos e chapéus de abas largas, em homenagem a pintores como Gainsborough.
Em uma fotografia tirada pelo americano Napoleon Sarony em 1882, Wilde apresentou-se na mesma pose do Menino Azul, em elegantes sapatos com fivelas e calças curtas.
Quando Wilde foi preso por ser homossexual, em 1895, ele se tornou o mais famoso homem assumidamente gay do mundo —e suas fotografias, tiradas por Sarony, foram proibidas.
Segundo Hedquist, "elas acabaram nos primeiros livros médicos que ensinavam às pessoas como reconhecer a homossexualidade". Estava enraizada uma visão brutal e intolerante da atração pelo mesmo sexo, com base, em parte, nas "indicações" visuais estereotipadas do Menino Azul.
Depois que o Menino Azul chegou aos Estados Unidos, ele ficou famoso e apareceu em cerâmicas, tecidos e milhares de reproduções impressas. A forma como ele foi interpretado no seu novo país também ficou sujeita aos ventos das mudanças culturais.
Hedquist conta que um episódio formador dessa interpretação foi o chamado "terror lilás", nos anos 1950, que fez com que homens e mulheres gays fossem considerados ameaças à segurança nacional e perseguidos nos órgãos governamentais.
Estereótipos comuns de comportamento gay —que hoje são motivos de risadas pela sua ignorância— como punhos com rendas e sapatos extravagantes eram mencionados como indicadores dos "inimigos internos".
OS ARQUÉTIPOS
Surgiram na cultura popular paródias cômicas grotescas de comportamento considerado gay, como em tiras em quadrinhos.
Na revista Mad de setembro de 1970, uma história em quadrinhos apresentava um personagem chamado Prissy Percy, que é zombado por rapazes esportistas americanos. A cena final revela que Percy é o Menino Azul.
A sensação e mensagem velada da história é homofóbica. Hedquist considera essa história o primeiro "passeio" do Menino Azul. Em 1976, uma história de Dennis, o Pimentinha, também apresentou o Menino Azul, que novamente foi rotulado como "afeminado".
"As ideias emergentes sobre como as pessoas veem os homens gays é muito importante para a forma como o Menino Azul se tornou um ícone", afirma Hedquist, "primeiro como fonte de ridicularização e depois como reapropriação".
A reapropriação veio na forma de uma revista gay publicada pela primeira vez em 1974, chamada Blue Boy (Menino Azul, em inglês).
A capa da primeira edição apresentou uma foto de Dale, um boxeador de Ohio, nos Estados Unidos, em homenagem à obra-prima de Gainsborough, mas sem calças e com um chapéu convenientemente reposicionado.
A revista, que foi criação do empresário Don N. Embinder, foi publicada até dezembro de 2007 e anunciava produtos e serviços com o Menino Azul como símbolo recorrente.
"A primeira agência de viagens gay chamou-se 'Blue Boy'", segundo Hedquist. "Eles tinham navios e hotéis onde os homens podiam ser abertamente gays, vestindo camisetas do Menino Azul e carregando malas de viagem com o personagem. Foi uma reapropriação completa e uma celebração de que o Menino Azul era gay".
No período após a Rebelião de Stonewall, em São Francisco (Estados Unidos), em 1969, o Menino Azul foi um símbolo de motivação e deixou um legado de diversos bares gays chamados "Blue Boy" em várias partes do mundo.
O Menino Azul também causou efeitos sobre as artes visuais. O artista norte-americano Robert Lambert criou colagens de imagens fotocopiadas e as enviou pelo correio para seus amigos. Algumas dessas imagens incluíam o Menino Azul como símbolo da sua sexualidade.
O Menino Azul também foi frequentemente apropriado pelo ceramista norte-americano Howard Kottler, como opção para expressar "referências homossexuais explícitas", segundo a historiadora da arte Vicki Halper.
Mas as referências mais explícitas ao Menino Azul vieram no trabalho de outro ceramista norte-americano, Léopold Foulem.
Segundo Hedquist, ele "transformou as tímidas alusões ao teor gay encontradas no trabalho de Lambert e Kottler em um dilúvio totalmente desenvolvido de significado homossexual", com suas cenas altamente provocadoras do Menino Azul com personagens como o Papai Noel e o Coronel Sanders.
Outros artistas identificados como homossexuais, como Robert Rauschenberg e Kehinde Wiley, mencionaram o Menino Azul como influência importante sobre sua produção posterior.
Wiley criou recentemente uma homenagem direta ao quadro, que se encontra em exibição no Museu de Arte Huntington, na Califórnia (Estados Unidos) —já que, em 1921, Henry e Arabella Huntington compraram o Menino Azul do comerciante de arte Joseph Duveen, que o havia adquirido do Duque de Westminster.
A pintura de Wiley, que mostra um Menino Azul do século 21 com tranças rastafári tingidas de loiro, relógio da Apple e boné de baseball, marca o ápice da longa jornada de dois séculos do original de Gainsborough, desde quando era um pilar dos valores culturais tradicionais até tornar-se um ícone gay.
Para Valerie Hedquist, O Menino Azul é um símbolo revolucionário na história dos direitos dos homossexuais. Além do seu apelo para os artistas gays, o seu uso como marca na revista Blue Boy nos anos 1970 pareceu ter um significado histórico fabuloso.
"Foi a primeira oportunidade para uma vida aberta e aceitável", afirma ela. "Ele forneceu um meio de levar uma existência totalmente pública para os homens homossexuais —e tudo veio através do Menino Azul."