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Um galpão no bairro do Canindé, na região central de São Paulo, guarda um resquício das patas do cavalo do Duque de Caxias; um escoteiro inteiro; uma águia; duas lagostas gigantes e alguns escritores. São monumentos ou fragmentos de monumentos que foram retirados das ruas da cidade em diferentes momentos da história, pelo menos desde a década de 1930.
Os motivos para estarem lá são diferentes daqueles que estão levando estátuas a caírem pelo mundo –nesses casos, elas vêm sendo retiradas em meio a protestos antirracistas porque homenageiam pessoas que participaram de sistemas de opressão, como a escravidão.
Já no galpão do Canindé jazem obras que foram retiradas pelo próprio estado por motivos mais mundanos: para dar espaço a um viaduto, por exemplo, porque foram danificadas ou roubadas. Mas mesmo ausentes elas provocam questões, diz a artista plástica e professora da USP Giselle Beiguelman, que estuda desde 2014 como e por que monumentos são retirados dos seus lugares originais.
"Esses fragmentos de monumentos (no depósito) são úteis porque nos fazem pensar se precisamos de monumentos, quais monumentos não temos, quais temos e como lidamos com essas estéticas da memória", diz ela. "Escrevemos por muito tempo a história do país suprimindo atores fundamentais, como indígenas e escravizados, e isso é algo que a historiografia vem problematizando nas últimas décadas", lembra ela.
QUEM GANHA HOMENAGEM, QUEM É ESQUECIDO
Em sua pesquisa, Beiguelman constatou que muitos monumentos de São Paulo mudam diversas vezes de endereço –às vezes, por motivos políticos, como é o caso da estátua O Beijo Eterno. Outros vão para o galpão do Canindé sem que haja uma discussão pública sobre o que deve ser feito com eles.
Às vezes, diz ela, não se sabe por que uma obra foi feita, nem por que mudou de lugar. "A cidade só passou a ter um órgão responsável pelos monumentos a partir de 2002. Antes disso, a implantação e remoção deles era bastante aleatória", diz Beiguelman.
Beiguelman criou toda uma obra artística sobre o tema. Retirou esses pedaços de monumentos do galpão e os expôs pela cidade, mapeou os monumentos que mudavam de lugar e lançou o livro "Memória da Amnésia: Políticas do Esquecimento" (Edições Sesc, 2019).
"Não quero dizer que esses monumentos devem ser recolocados na cidade, até porque muitas vezes foram criados de forma aleatória. A função é tensionar a relação da memória e da preservação. Esse é o desafio do tipo de obra que eu faço. Não é 'vamos colocar tudo no lugar, ah, essa cidade de vândalos'. É tentar entender o que eles nos permitem pensar sobre os monumentos que sim, estão, à nossa volta", diz a artista.
Atualmente há 11 peças no depósito. A Secretaria de Cultura diz que a ideia é que sejam devolvidas às ruas, depois de uma análise de cada caso e da aprovação da Comissão de Gestão de Obras e Monumentos Artísticos em Espaços Públicos. A história de Brasil contada pelos monumentos que estão lá é a "dos poderosos, de grandes líderes políticos", como diz Beiguelman.
"Entrar num lugar desses é lidar com as políticas de esquecimento que estruturam a relação do Brasil com sua memória. Ela é produto de ditaduras e interdições mas também de formas de se criar invisibilidades dos acontecimentos de modo que isso vira uma política de esquecimento. A primeira sensação ao entrar no galpão é que você está entre essas contradições", diz ela.
Veja aqui o que se sabe das histórias de alguns desses monumentos.
LAGOSTAS
Entre os fragmentos de monumentos que estão hoje no galpão, o mais inusitado, na opinião de Beiguelman, e o único que não se encaixa no perfil de 'retrato de poderosos' é o das esculturas de lagostas da Fonte Monumental da Praça Júlio Mesquita, no centro da cidade.
As lagostas originais foram roubadas diversas vezes, até que a Prefeitura resolveu tirá-las de lá e trocá-las por versões de resina, que são as que permanecem até hoje. Seguindo estilo art nouveau, a fonte mostra uma cena de um pescador cercado de sereias, aparentemente resistindo à sedução delas. No entorno da fonte ficam as lagostas.
Idealizadas por uma das poucas artistas mulheres do começo do século 20, Nicolina Vaz de Assis Pinto do Couto (Campinas, 1874–Rio de Janeiro, 1941), acabaram sendo feitas por um homem. Couto era a autora do projeto da fonte, mas, segundo a versão corrente, brigou com o fornecedor de mármore, e a execução da obra foi repassada anos depois a um artista homem.
A fonte, que de início ficaria na Praça da Sé, fazia parte de um projeto de urbanização de São Paulo intitulado "Centro Cívico" e foi encomendada em 1913. A ideia era construir um espaço que reunisse o Paço Municipal, a Catedral, o Palácio da Justiça e o Congresso do Estado. Apenas o projeto de reerguer a catedral, que já existia, mas era considerada modesta demais, foi para frente. Não se sabe porque a fonte foi finalmente erguida na praça Julio Mesquita, e não na Sé.
A execução do monumento só aconteceu anos depois de sua encomenda, e foi realizada por dois homens. Num primeiro momento, a obra atrasou devido ao desentendimento da artista com os fornecedores, depois, ficou de lado durante os bombardeios da Revolução de 1924, revolta de tenentes descontentes com o governo federal de Arthur Bernardes. Foi finalmente inaugurada em 1927.
PATAS DO CAVALO DE DUQUE DE CAXIAS
No final dos anos 1930, um militar organizou uma campanha para levantar recursos para a construção de um monumento que lembrasse a figura de Duque de Caxias, patrono do Exército e líder militar que reprimiu revoltas populares como a Balaiada, no Maranhão no final dos anos 1830, e liderou tropas na Guerra do Paraguai.
Segundo o site São Paulo Antiga, houve até mesmo um jogo de futebol entre Corinthians e Palestra Itália para arrecadar dinheiro. Feito um concurso de projetos, venceu o escultor Victor Brecheret (Comuna di Farnese, Itália, 1894 - São Paulo, SP, 1955), que projetou o duque a uma altura de um edifício de dez andares, em cima de um cavalo, empunhando uma espada.
A estátua, inaugurada no dia 25 de agosto de 1960, Dia do Soldado, fica na Praça Princesa Isabel, no Centro de São Paulo, perto da avenida Duque de Caxias –mas desde 1991, o cavalo só tem três patas. No dia 15 de agosto daquele ano, um grupo de militares de baixa patente, insatisfeitos com seus salários, arremessou uma bomba contra o monumento, que se esfacelou em alguns pedaços, segundo o site da Prefeitura. Desde então, as patas do cavalo jazem no depósito.
BILAC PULVERIZADO
Olavo Bilac (1865-1918), eleito "Príncipe dos Poetas Brasileiros" no concurso da revista Fon-Fon em 1913, era bastante popular no início do século 20. Quando morreu, em 1918, um grupo de estudantes da Faculdade de Direito de USP quis homenageá-lo, e fez uma campanha pública para bancar o projeto do monumento. Um dos principais financiadores foi o então presidente da Liga Nacionalista, Frederico Vergueiro Steidel.
O monumento foi inaugurado na confluência das avenidas Paulista, Consolação e Angélica em 7 de setembro de 1922, para coincidir com o centenário da Independência do Brasil.
Aos poucos, passou a ser criticado por sua estética e porque o escultor era estrangeiro. "Era um momento em que o nacionalismo estava em todas as discussões, inclusive na arte. Havia um sentimento de valorização de aspectos nacionais. A Semana de Arte Moderna de 1922 tinha acontecido havia poucos meses, reafirmando essa característica, mesmo que na época ela não tenha tido a importância que se dá hoje", diz Heloisa Barbuy, professora de museologia da USP e autora do livro As Estátuas da Faculdade de Direito (Ateliê Editorial).
O monumento foi desmontado em 1935, quando a prefeitura mudou o trânsito na região. Com o tempo, as partes foram dispersas pela cidade, e algumas acabaram nunca saindo do depósito do Canindé.
Uma delas, da estátua O Beijo Eterno, passou por uma saga diferente. Foi mudada de bairro porque moradores a achavam imoral, por mostrar um casal nu, aparentemente inter-racial, beijando-se. Depois foi levada ao depósito, onde ficou guardada, e finalmente foi "sequestrada" por alunos de Direito da USP, que a colocaram na frente do prédio onde funciona a escola, no centro, e onde a estátua está até hoje.
AVIADORES
A escultura Heróis da Aviação, de Mino Roque, é uma homenagem a três pioneiros da aviação no Brasil, Bartolomeu de Gusmão, Santos-Dumont e Edu Chaves. Antes de ser desmontada, consistia de uma coluna com uma águia no topo e, na base, tinha medalhões com os rostos dos três.
Foi projetada para ficar no Hipódromo da Mooca em 1915, onde Chaves terminou seu voo entre Santos e São Paulo, e lá ficou até 1951, quando o Hipódromo foi transferido para o Morumbi e o monumento, para a Praça Coronel Fernando Prestes em 1951. Quando a praça foi reformada, em 2006, a escultura foi levada para o depósito, e lá está até hoje. Ele faz parte do programa 'Adote uma Obra Artística', da prefeitura, que incentiva instituições a se responsabilizar pelo cuidado dos monumentos. No entanto, não há registro de que tenha sido adotado.
BUSTOS DE ESCRITORES
Estão no depósito dois bustos do chamado Jardim dos Escritores, um conjunto de esculturas de membros da Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche, onde fica a instituição. São eles o busto do advogado e político paulista Aureliano Leite, feito por Luiz Morrone, e o de Vicente de Carvalho, poeta, jornalista e jurista, de Ettore Ximenes.
Há também um busto do artista libanês Khalil Gibran, feito pela também escultora libanesa Odette Eid, que morreu em 2019. A secretaria de Cultura não explicou por que essas estátuas estão no depósito.