Música

Artistas da música gospel inovam jeito de fazer música e atraem público de outras religiões

Priscila Alcântara, Gabriela Rocha e Eli Soares falam sobre canções

Priscilla Alcântara - Lucas Seixas/UOL
São Paulo

A música gospel sempre teve um público forte, mas com a força do streaming, os fãs desses artistas se expandiram e passaram a abranger ouvintes fora da redoma cristã. Além dos clássicos louvores a Deus e letras inspiradas em trechos da Bíblia, surgem canções sobre amor, paz e até saúde mental, além de ritmos mais variados, como a música eletrônica e o pop.

O Brasil é o segundo maior mercado cristão do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, e isso se reflete na música, segundo Maurício Soares, responsável pela área gospel da Sony Music. “Hoje, no Brasil, todas as grandes gravadoras do mainstream possuem departamentos de música gospel seguindo o exemplo do que a Sony Music já desenvolve há quase 10 anos”, conta o executivo. 

Mas, não é só isso. A facilidade de acesso dada pela internet foi um empurrãozinho para que o gospel atraísse novos fãs, tanto pelas plataformas digitais quanto pelo YouTube, que viraliza videoclipes e gravações independentes. 

“Cada vez mais plataformas de streaming vêm reconhecendo a força do segmento e, por isso, estão buscando conhecimento e relacionamento para fidelizar o público evangélico”, avalia Paulo Lima, presidente da Universal Music Brasil.

“Parte importante desse processo é a criação de playlists, que são desenvolvidas pelos curadores destas plataformas. Eles têm a função de selecionar as músicas que deverão entrar em cada uma destas seleções, provocando o efeito ‘gôndola’, que é um tipo de exposição que pode alavancar o sucesso de uma música, transformando-a em um hit”, avalia Lima.

Para o executivo, o artista que tira proveito dessas novas formas de divulgação consegue fazer uma “análise de comportamento de seus usuários”. “Quando o artista entende este processo, ele vai se empenhar em criar um relacionamento com seus fãs, induzindo o consumo e o compartilhamento dos seus singles”, conclui Lima.

E essa divulgação levou os artistas gospel a serem consumidos por pessoas que não necessariamente professam a fé evangélica. “O alcance deste estilo de música hoje atinge pessoas de diferentes matizes religiosas que antigamente não tinham acesso aos CDs e hoje podem simplesmente incluir estas canções em suas playlists ou consumir de forma aleatória”, explica Soares. 

Nesse cenário, artistas jovens que vêm com propostas artísticas diferentes dividem espaço com nomes já consagrados como Aline Barros, Juliano Son, Damares, Cristina Mel, Leonardo Gonçalves e o grupo Renascer Praise (liderado pela bispa Sonia, da Renascer por onde passam diversos integrantes). 

“É fato que a música gospel hoje está muito mais aberta a novos estilos, novas letras, novas propostas. Há artistas que estão implantando novas linguagens ao que chamamos de música gospel tornando o estilo mais próximo das tendências do que temos na música popular mundial”, diz Soares, citando nomes como o DJ PV e Kennto. A cartela da gravadora tem entre as apostas, ainda, Preto no Branco, Kemuel, Marcela Taís, Gabi Sampaio e Kemilly Santos, Louisy Cim, Mari Borges, Gabi Sampaio.

A PALAVRA RENOVADA EM NOVOS GÊNEROS

A cantora Priscilla Alcântara, 23, que tem entre os fãs a atriz Bruna Marquezine, 23, está entre esses artistas inovadoras. No gospel desde adolescência, ela se abriu para a música pop e letras com temas mais abrangentes inspiradas por ídolos como Michael Jackson e Beyoncé.

“Aconteceu uma maturidade pessoal, que me fez entender a linguagem que eu gostaria de adotar na minha música, foi gradativo”, afirma Alcântara que se profissionalizou artisticamente na televisão, mas que começou a cantar na igreja já aos três anos. Para quem não lembra, ela foi apresentadora do programa Bom Dia e Cia (SBT), em 2005, com Yudi Tamashiro.

A mensagem ainda é a maior preocupação de Alcântara. A música não precisa de justificativa, mas ela ajuda pessoas e faço isso de forma intencional. Vivo minha fé, sou cristã e isso reflete nas minhas músicas sem definir um padrão. Por muitos anos, o gospel seguiu uma certa linguagem, mas alguns artistas vêm a desconstruindo. Faço isso não por rebeldia, mas, simplesmente, por esse jeito representar melhor quem eu sou”, define a cantora. 

A saúde mental é o tema mais recente, presente no álbum “Gente”. “No meio cristão, problemas psicológicos são um tabu e, por isso, adorei desmistificar isso e trazer o assunto para a minha arte”, conta a artista, que luta contra a ansiedade. Pessoas de diferentes crenças conversam com ela sobre o assunto nas redes sociais.

“Sempre quis deixar claro que depressão não é coisa do demônio e que a gente pode tratar desses problemas com mais humanidade, independentemente pela sua fé. Muita gente que se sentia oprimida por isso, acabou conquistando um ar para respirar”, afirma ela, que neste setembro amarelo lançará um projeto audiovisual sobre esse tema e, em novembro, terá um novo álbum. 

Outro destaque do gênero é Eli Soares. Fã de black music, pagode e samba, o cantor de 28 anos entende que o público procura conforto na música gospel. “As pessoas têm ouvido independentemente de religião. Acho que é a necessidade de ouvir uma palavra de cura, de alegria. A música cristã tem sido uma ferramenta a todas essas pessoas que não importa a crença, estão sempre em busca de um sentido para a vida”, conta Soares. “Não mudei porque todo mundo está fazendo algo diferente. O que importa é a verdade, sempre fiz o que gostei de fazer”. 

Também cantora e compositora Gabriela Rocha, 22, canta desde a infância, mas foi com a música “Deus Proverá”, entre 2017 e 2018, que ela explodiu nas rádios e na internet. “Foi em maio deste ano, que senti a minha agenda ficar mais agitada”, diz Rocha. “Gravei com meu pai que é pastor [Marquinhos Gomes] algumas participações especiais, mas não vivia da música antes”, lembra ela. Rocha ganhou maturidade atuando como produtora musical. 

“Canto experiências do meu dia a dia. Canto o que vivo. Quero passar a verdade que está dentro de mim, artisticamente e espiritualmente falando”, afirma Rocha. Ela dá como exemplo uma de suas músicas. “A faixa ‘Meu Pai É Bom’ fala que não entendo Deus só como um ser divino, da religião, mas o vejo como meu pai. Lembro que, quando eu era pequena, as pessoas falavam de Deus como algo muito distante, e descobri que não é nada disso”, diz Rocha, que também recebe mensagens de todos os públicos, como do candomblé, espiritismo e cristianismo. 

“Minha música não é para evangélicos, é para seres humanos. Muita gente fala que certa música mexeu com a pessoa e é muito gratificante ouvir isso”.  Rocha se prepara para lançar uma música importante 

FÃS QUE VÊM DE TODAS AS RELIGIÕES

​“Meu coração batendo, minha alma respirando/Encontrei minha vida quando a coloquei em queda para o alto, espírito se elevando”. Foi com versos como esse que o assistente administrativo, Junior Relva, 40, se descobriu fã da banda gospel australiana Hillsong United. 

Seguidor de umbanda, que toca tombar nas reuniões espíritas, Relva diz que essa banda é sua trilha sonora para aguentar o pesado trânsito de São Paulo. “Tudo começou com a música ‘Broken Vessels’”, lembra ele. “As melodia são lindas, é rock, como eu já gosto, e as letras, quando tem um trecho da bíblia são tratadas como histórias, não há pregação”, afirma Relva.

No entanto, essa mesma banda é uma das mais citadas por fãs evangélicos. O casal Pedro Marcos Oliveira Bello, 61, e Marisa de Carvalho Azevedo Bello, 58, que são fãs de música gospel lembram que a maioria dos sucessos no Brasil são versões em português da Hillsong. “A música ‘Savior King’ é cantada por Aline Barros como ‘Rei Salvador’”, por exemplo, diz Bello.  “Outro cantor que inspira muitas versões é o [americano] Michael W. Smith. Uma de suas músicas é ‘Above All’”, explica ele. 

Os dois que se converteram ainda adultos afirmam que a música tem poder de elevação. “Tive problemas com uma filha e foi quando eu comecei a tocar violão na igreja. A gente mal se falava quando ela começou a me seguir e cantar comigo. Nossos olhos começaram a se cruzar novamente, e a música nos uniu”, afirma Azevedo Bello. 

Fãs de outros gêneros musicais, eles dizem se concentrar nas canções elevadas. “Não dá pra ouvir pagode ou funk, por exemplo”, diz Bello. Mas a família é tão amante de música que a neta deles já está inscrita para o The Voice Brasil (Globo). 

Já os amigos Daniela Alves Martins, 19, e Emanoel Pereira, 22, se conheceram por frequentar a mesma igreja e por terem um amor em comum: a música. Por serem evangélicos, eles ouvem mais canções do gênero gospel.

“Acho que o gênero é sobre a música que prega a palavra. Mas tem pop, tem roc, tem soul, tem rap. Fora desse meio, eu ouço de tudo, samba, pagode, acho superlegal”, diz Martins, que cita novos artistas e nomes já clássicos do gospel, como Priscila Alcântara, Ana Paula Valadão, Fernandinho, Aline Barros e Cristina Mel. 

A cantora Bruna Karla foi uma das primeiras inspirações deles em interagir nas redes sociais com outros fãs do gênero. “As mulheres estão mais em evidência hoje. Quando você pede para citar referências, sempre vamos começar por um nome feminino”, lembra Pereira. Junto do gospel, ele também é fã de música secular e rock pesado. “Minha playlist começa com ‘The Number of the Beast’ e termina em ‘Glória, Aleluia’”, brinca ele, citando o sucesso da banda de metal Iron Maiden.