O filme 'Ângela', visto por alguém que chamava Doca Street de tio
É sempre estranho ver na tela pessoas que você conheceu pessoalmente
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Acordamos no último dia do ano de 1976 com uma notícia estrepitosa: Doca Street havia matado Ângela Diniz a tiros, em Búzios. Eu tinha 16 anos de idade, e estava no Rio de Janeiro com meu pai, minha mãe e meu irmão mais novo para mais um Réveillon.
"Se o Doca precisar de ajuda, eu vou dar um jeito de escondê-lo", disse minha mãe, aflita. Àquela altura ainda não se sabia do paradeiro de Raul Fernando do Amaral Street, seu primo em terceiro ou quarto grau, mas presente em nossas vidas desde sempre. Tanto que eu o chamava de "tio Doca".
Contaminada pelo parentesco e pelo espírito da época, mamãe não quis nem saber: Doca era inocente, foi "aquela mulher" quem o levou à loucura. Meu pai, mais sóbrio, lembrava que nada justificava um crime tão cruel.
Em 1970, na mesma Búzios, papai e mamãe estavam num carro dirigido por Doca. Que cometeu uma barbeiragem, colidiu com outro veículo e feriu gravemente meus pais. Papai, todo quebrado, passou dias hospitalizado no Rio. Minha mãe ficou com uma enorme mancha negra numa das pernas. Pois é: Doca também quase me deixou órfão, mesmo sem querer.
A última vez que o vi foi nas férias de julho de 1976. Estávamos na fazenda de amigos em comum, em Araras, no interior de São Paulo. Doca já era casado com sua segunda mulher, Adelita Scarpa. Na varanda, discretamente, ele ofereceu um baseado para meu pai, a pessoa mais careta do mundo.
Alguns meses depois, Adelita deu uma grande festa em sua casa em São Paulo. Entre os convidados estava o colunista social carioca Ibrahim Sued e sua nova namorada, Ângela Diniz, a "pantera de Minas".
Ela e Doca, que nunca tinham se visto antes, tiveram uma conexão instantânea. Dias depois, ele ia embora da casa de Adelita para viver com Ângela, levando suas roupas enroladas em lençóis. Sua agora ex-mulher não deixou que ele pegasse nenhuma mala: afinal, eram todas dela.
Foram cerca de quatro meses de uma paixão avassaladora, pontuada por crises de ciúme, agressões físicas e muitas drogas. O desfecho sangrento marcou o início de uma avalanche midiática. Nos anos seguintes, o caso dominou a imprensa brasileira, até Doca finalmente ser condenado.
O assassinato de Ângela Diniz voltou à tona em 2020, graças ao excelente podcast "Praia dos Ossos", produzido pela Rádio Novelo. É um trabalho jornalístico impecável: a história toda está lá, da vida pregressa do casal de amantes aos julgamentos de Doca e o surgimento da campanha "Quem Ama Não Mata", um marco histórico do feminismo brasileiro.
O filme "Ângela", que estreou nesta quinta (7) nos cinemas, não pretende ser uma versão 100% fiel ao que de fato aconteceu. Eu, que convivi com alguns dos personagens muito tempo atrás, passei a primeira meia hora anotando semelhanças e diferenças.
Isis Valverde está fantástica, exalando dor e sensualidade. O Doca feito por Gabriel Braga Nunes tem uma energia similar à do original. Mas por que todo mundo só o chama de "Raul"? Já Adelita de Carolina Manica está bem diferente: a verdadeira, naquela época, tinha os cabelos curtos e cílios imensos. E Gustavo Machado, além de não ter semelhança física, é jovem demais para interpretar Ibrahim Sued.
Até aí, tudo bem. Ver alguém conhecido representado na tela, na pele de um ator, é sempre uma experiência esquisita. O que me incomodou mais em "Ângela" foi o rumo melancólico que o filme toma depois do encontro explosivo de seus protagonistas.
O casal se instala numa casa em Búzios (na verdade, uma mansão numa praia na região de Porto Seguro – a casa onde Doca e Ângela viveram na Praia dos Ossos, muito menor, nem era de frente ao mar). E começa uma rotina de brigas e lágrimas. Ângela sofre, porque seu primeiro marido lhe tirou a guarda dos três filhos pequenos.
O que o filme de Hugo Prata não explica é porque ele fez isto. O rumoroso caso do caseiro assassinado, contado em detalhes escabrosos no podcast da Rádio Novelo, é simplesmente ignorado. "Ângela" acaba sanitizando a imagem de Ângela Diniz, mostrando-a como uma mártir da liberdade. E assim, também termina por julgá-la, ao esconder seu comportamento subversivo para a época.
Tampouco aparecem personagens cruciais como a "alemãzinha de Búzios", uma suposta traficante que frequentava a casa de Ângela e Doca, e que sumiu misteriosamente logo depois do crime
Ângela não era uma santa, e nem por isto merecia ter sido morta. Já Doca não era mais machista que nenhum homem de sua geração. Seu primeiro julgamento, em que os advogados brandiram a "legítima defesa da honra", é que o transformou um símbolo do atraso e da selvageria.
Depois de cumprir sua pena, Doca foi solto e se casou com uma das melhores amigas da minha mãe. Mas deixou de circular, e eu nunca mais o vi. Morreu em 2020, aos 86 anos de idade.