Briga entre Ailton Krenak e Daniel Munduruku pode ser boa para a Academia Brasileira de Letras
Dois candidatos indígenas estão na disputa por uma cadeira na instituição
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Durante a maior parte de sua história, a Academia Brasileira de Letras não foi conhecida pela diversidade de seus membros. Fundada em 1897, a casa teve entre seus idealizadores Machado de Assis, um homem mestiço, que, no entanto, teve o tom de sua pele escamoteado pelo "establishment" até bem pouco tempo atrás.
Dominada por homens brancos, a ABL só admitiu a primeira mulher em 1977: ninguém menos do que Rachel de Queiroz, àquela altura uma escritora muito mais lida e consagrada do que a maioria de seus colegas imortais.
Enquanto isto, poderosos eram eleitos sem ter uma obra literária de peso. Foi o caso do general Aurélio de Lira Tavares, que integrou a Junta Militar que governou o Brasil durante boa parte de 1969, e que escrevia poemas sob o pseudônimo de Adelita. Ou o ex-presidente José Sarney, cujos romances nunca foram levados muito a sério pela crítica.
Neste século, a Academia resolveu ficar mais pop. Abriu suas portas para autores jovens e irreverentes, como Geraldinho Carneiro e Antonio Cícero. Também recebeu Paulo Coelho, que entrou mais pelo fato de ser o escritor brasileiro mais lido no mundo do que pela qualidade de seus livros.
Recentemente, tornaram-se acadêmicas personalidades que não têm na escrita sua função principal, como o cineasta Cacá Diegues, o cantor e compositor Gilberto Gil e a atriz Fernanda Montenegro. Mas a presença delas faz com que a ABL transcenda a literatura e se aproxime do ideal de ser um lugar que concentra o suprassumo da cultura brasileira.
Por isto mesmo, aumentou a pressão por mais diversidade em seus quadros. Alguns anos atrás, artistas e intelectuais se engajaram na campanha de Conceição Evaristo, que se tornaria a primeira mulher negra da Academia. Mais recentemente, o quadrinista Maurício de Sousa, "pai" da turma da Mônica, também se candidatou. As duas tentativas fracassaram, mas sinalizaram que os tempos estão mudando.
Em 2021, o escritor e ativista paraense Daniel Muduruku concorreu à cadeira 12 da Academia, e recebeu nove votos. Se eleito, ele seria o primeiro indígena da instituição, mas perdeu para o cirurgião Paulo Niemeyer Filho.
Agora Munduruku está no páreo novamente, pela cadeira 5. Dessa vez, ele achou que sua eleição seria uma barbada: afinal, os direitos dos povos originários estão na ordem do dia, e realmente já passa da hora de a ABL contar com um indígena em seus quadros.
Mais eis que surge um adversário temível: o poeta e filósofo mineiro Ailton Krenak, que tem uma obra mais contundente que a de Munduruku. Krenak logo se tornou o favorito desta eleição.
Inconformado, Munduruku veio a público acusar Krenak de "traição", pois eles teriam combinado de não disputarem a mesa vaga na ABL. Krenak retrucou que não assinou nenhum "acordo de exclusividade", e não retirou sua candidatura.
Acontece que, se um deles for eleito agora, as chances do outro diminuem a curto prazo. Dificilmente a ABL elegerá dois indígenas em pouco tempo.
Correndo por fora está a historiadora Mary Del Priore, conhecida por livros que esmiuçam o Brasil do século 19 em linguagem acessível. A seu favor está, além de sua obra grandiosa, o detalhe de que a cadeira 5 era ocupada por outro historiador, José Murilo de Carvalho. A Academia costuma preencher suas vagas com autores da mesma área de seus antecessores.
Mary Del Priore também seria apenas a quinta mulher na composição atual da ABL. Sim, é inacreditável que, entre os 39 integrantes atuais, apenas quatro sejam mulheres.
Essa briga toda pelo fardão tem um lado desagradável, é óbvio, mas, no fundo, pode ser boa para a Academia. A imensa maioria dos brasileiros não sabe o que ela faz nem para que serve. Estar na mídia, mesmo por causa de uma disputa acirrada, faz bem para a ABL, que assim se torna mais conhecida.
Além do mais, a discussão por mais diversidade em tudo é mais do que saudável: é absolutamente necessária. O Brasil não pode mais ignorar que a maioria de sua população é negra, que as mulheres superam os homens em número e que os povos originários precisam de mais visibilidade e participação. A ABL é só um detalhe.