Tony Goes
Descrição de chapéu Coronavírus

Agnaldo Timóteo era um poço de contradições, na música e na vida

Mesmo admitindo relações com homens, cantor tinha discurso homofóbico

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"A gente não pode bater palmas para a vulgaridade, para o exibicionismo, para o oportunismo", bradava Agnaldo Timóteo ao microfone."Que negócio é esse, poxa? Aos 47 anos, com cinco filhos? Por que não fez isso quando tinha 20 anos? Ah, para, tô indignado!”

O ano era 2013, e o cantor estava sendo entrevistado por Geraldo Luís para o programa Balanço Geral, da Record. O assunto era quente: a então recente saída do armário de Daniela Mercury, que acabara de revelar ao mundo sua relação com a jornalista Malu Verçosa.

"Isso não existe, isso é uma mentira", disse Agnaldo a Rafinha Bastos em 2014, no extinto talk show Agora É Tarde, da Band. "Casamento é só entre macho e fêmea. Não existe casamento entre dois homens ou duas mulheres."

Esses são só dois exemplos das muitas declarações homofóbicas que Agnaldo Timóteo deu em seus últimos anos de vida. Uma rápida pesquisa na internet revela várias outras, em programas de TV ou de rádio. Sem emplacar um hit há décadas, ele parecia haver encontrado um jeito de se manter em evidência. Isso se chama... oportunismo.

O mais surpreendente é que "A Galeria do Amor", sua canção mais icônica, é praticamente um hino gay. Lançada em 1975 (ou seja, em plena ditadura militar, quando a sigla LGBTQI+ nem sonhava em existir), a letra descreve uma noite na Galeria Alaska, antigo ponto de encontro de homossexuais no Rio de Janeiro.

"Na galeria do amor é assim / Muita gente à procura de gente / A galeria do amor é assim / Um lugar de emoções diferentes / Onde a gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente" diz o refrão, escrito pelo próprio Agnaldo. É bom lembrar que “entendido” era como os gays daquela época se referiam a si mesmos.

"Eu fiz as minhas músicas, todas elas, embasadas na minha cama", disse Agnaldo no Conversa com Bial, em 2019. "Na minha dor, na minha solidão, na minha paixão."

Dois anos antes, ao gravar um depoimento para um documentário sobre sua vida, "Eu, Pecador", de Nelson Hoineff, o cantor finalmente admitiu, com todas as letras, que havia tido "romances com homens". Mas jamais se definiu como homossexual.

Essa contradição estrondosa não foi a única de sua carreira. Dono de uma das vozes mais potentes da história da música brasileira, Agnaldo Timóteo era tido como brega mesmo quando gravava canções de Chico Buarque ou Caetano Veloso. Jamais atingiu o status de cult de seus amigos Cauby Peixoto e Angela Maria desfrutaram no final de suas vidas.

Na política, ele teve uma carreira errática, oscilando entre votações consagradoras e derrotas fragorosas. Trocou várias vezes de partido, foi deputado federal pelo Rio de Janeiro e vereador no Rio e em São Paulo, sem deixar nada de relevante em nenhuma das legislaturas de que participou.

Sua postura contra o casamento gay lembra a de Clodovil Hernandes. Morto em 2009, o estilista também se elegeu deputado federal –e prometeu que não faria absolutamente nada pelos direitos igualitários, mesmo sendo gay assumido havia décadas.

Tanto Clodovil quanto Agnaldo Timóteo eram frutos de uma era de repressão. Um tempo em que ser homossexual era uma vergonha absoluta, a ser escondida a qualquer custo. É uma pena que, mesmo com tantos avanços na sociedade, nenhum dos dois tenha se libertado das prisões mentais em que viviam.

Dono de um temperamento explosivo, Agnaldo Timóteo também sabia ser terno e encantador. Sua morte por Covid-19 é mais uma das mais de 3.000 tragédias diárias a que o Brasil vem sendo submetido. E fica ainda mais pungente quando sabemos que a última canção que lançou, em 2020, se chama “Deus Cuida de Nós (A Epidemia)”.