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Documentário sobre Escola Base é de uma coragem sem precedentes

Primeiro a noticiar denúncia que se mostraria falsa, o repórter Valmir Salaro transforma em filme um raro acerto de contas com o passado

O repórter Valmir Salaro na pré-estreia do documentáio Escola Base, do GloboPlay, que revisita o caso emblemático de uma falsa acusação - Bob Paulino/Globo Divulgação

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São Paulo

"Escola Base", documentário que chegou ao Globoplay nesta quinta-feira, 10, é uma produção improvável. E necessária não apenas aos interessados em zelar pela responsabilidade sobre o que se noticia, do jornalismo profissional ao oba-oba das redes sociais.

O filme é uma aula útil ao exercício de evolução humana, que passa pela nobreza de se reconhecer os próprios erros (mesmo quando se tropeça uma única vez em meio a centenas de acertos, como no caso da carreira do repórter Valmir Salaro), e de saber perdoar (como as vítimas desse triste episódio).

Prepare o lenço antes de apertar o play.

O enredo resgata, passo a passo, os erros cometidos inicialmente pela polícia, mas também por parte da imprensa, sobre o que se mostraria uma falsa acusação de pedofilia aos donos de uma escola infantil em São Paulo e ao motorista que transportava os alunos daquele estabelecimento.

De um dia para o outro, o tio da perua se viu forçado a fugir para não ser linchado nem preso. Educadores ciosos de seu papel foram injustamente acusados de usarem crianças em produções pornô, e a vida deles jamais seria refeita, mesmo após o reconhecimento da inocência de todos.

Isso foi em 1994, bem antes da era das redes sociais, o que não impediu que um erro, reforçado por um pré-julgamento com linchamento público, causasse um estrago irreversível no histórico de vida dos acusados e também de seus filhos.

O caráter improvável da produção está no fato de o filme ter sido uma iniciativa de Valmir Salaro, repórter da Globo que deu a notícia sobre a acusação em primeira mão pelo Jornal Nacional, uma vitrine de incontestável alcance para a propagação da história. A narrativa se baseava em um resultado de perícia divulgado pelo delegado do caso, que afirmava que um dos meninos apontados como vítima da suposta pedofilia havia sido abusado sexualmente.

Não era nada disso. Mas até que se descobrisse o equívoco, não só Salaro, como outros repórteres embarcaram na versão do delegado, que, como veremos no resgate das reportagens da época, não trazia sustentações suficientes para confirmar a suposta culpa dos donos da escola.

A sinceridade de Salaro no filme é de uma nobreza rara e desencadeia a coragem de reencontrar, olho no olho, uma das sócias da escola, Paula Milhim Alvarenga, e Ricardo Shimada, filho dos sócios que já morreram, em cenas de dor, perdão e redenção.

Foi só por ocasião da produção que o jornalista veio a tomar conhecimento sobre a tortura sofrida pelos acusados durante interrogatório policial da época. Uma psicóloga, essencial para a elucidação do equívoco, fala pela primeira vez sobre o assunto e revela que a mãe responsável pela primeira acusação fantasiava muito os relatos sobre o filho.

O repórter também ouve Paula Milhim Alvarenga relatar que toda a pressão popular causada pela acusação a inibia de falar e denunciar os abusos cometidos por agentes policiais, mas a verdade é que os jornalistas, à época, tampouco se esforçaram para ouvir a versão dos acusados.

Em sessão de pré-estreia promovida pelo GloboPlay na sala do Cine Marquise, em São Paulo, na quarta-feira, 9, uma plateia de estudantes acompanhou o relato de Salaro e da equipe responsável pela produção do documentário. "Não é um momento feliz para mim", disse ele, antes do início do filme, onde também estavam Paula Milhim Alvarenga e Ricardo Shimada.

"Eu errei, assumo a minha parcela no erro", completou o jornalista, que torce para que outros responsáveis pelo equívoco, como o delegado que divulgou a falsa acusação e a perícia errada, façam o mesmo.

O delegado, hoje aposentado, foi procurado pela equipe do filme, mas esquivou-se de atender à produção, assim como a mãe que desencadeou a falsa denúncia.

No filme, Salaro finalmente lê uma carta que havia sido escrita pela mãe de Ricardo, Maria Aparecida Shimada, sócia da Escola Base, hoje morta, que lhe foi entregue havia 27 anos, sem que ele jamais a tivesse lido.

"Vou voltar para uma história que há 27 anos me atormenta", afirma o jornalista no documentário. O projeto é dividido com o jornalista Alan Graça Ferreira, seu amigo e colega em pautas no Fantástico. "Desde que eu soube que aquelas pessoas eram realmente inocentes, eu passei a falar sobre o caso e era uma voz solitária. Sempre sou convidado para falar sobre o assunto em faculdades de jornalismo. E, em viagens, o Alan foi me convencendo que isso podia se transformar num documentário", explica Salaro, que soma 42 anos de experiência no jornalismo investigativo.

A proposta de reencontrar o passado é tão respeitosa à memória e à vivência dos fatos, que Salaro conversa com Paula, Ricardo e Maurício, o motorista da Kombi escolar, em uma área vazia do pequeno edifício que abrigava as produções jornalísticas da Globo em São Paulo naquele tempo, na Praça Marechal Deodoro, onde hoje funciona uma escola de ensino a distância. É a "Globo velha", como ele diz no filme.

"Eu vejo nesse documentário um tributo ao jornalismo", diz Ferreira. "Num momento em que a imprensa é tão atacada, ter um jornalista consagrado que abre o peito para discutir um episódio desta relevância sem filtros, aproxima o jornalista das pessoas", conclui.

"Escola Base – Um repórter enfrenta o passado", um filme improvável e da maior utilidade pública, vale repetir, tem direção de Eliane Scardovelli e Caio Cavechini, com roteiro de Bruno Della Latta.