Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Filmes

Segredos e transformações da série cômica mais longeva da TV americana

Rob McElhenney fala do sucessso de 'It's Always Sunny in Philadelphia'

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Ashley Spencer
Los Angeles

Os últimos 12 meses foram os mais secos em um século, na Califórnia. Mas em uma recente tarde de novembro, o mesmo estado americano lembrava estranhamente a Irlanda.

Pelo menos na sala de edição de "It’s Always Sunny in Philadelphia", onde a equipe de efeitos visuais estava alterando diligentemente o esquema de cores das cenas gravadas para torná-las mais parecidas com a Irlanda. Lentamente, as encostas ressecadas de Bodega Bay começaram a ganhar o tom verdejante dos aclives de Slieve Leagues. As colinas douradas e poeirentas do condado de Sonoma adquiriram o tom chuvoso do condado de Donegal.

Diversos dos episódios da próxima temporada da série se passam na Irlanda, onde também deveriam ter sido gravados, antes que surgisse a pandemia. Isso tornou necessário reforçar o verde e o cinzento na pós-produção.

Vestindo uma camiseta preta que traz a imagem de um punho erguido, em apoio ao sindicato International Alliance of Theatrical Stage Employees (Aliança Internacional de Funcionários de Teatro), Rob McElhenney se levantou do sofá de um salto, como se puxado por uma corda invisível. Ele tocou a tela firmemente com um dedo.

"Será que podemos escurecer mais as rochas das montanhas?" Ele voltou a se sentar, e depois pulou do sofá de novo. "E escurecer o céu?". E de novo. "Aquele pináculo parece suficiente?". Um grande suspiro. Depois, uma pausa. "Amo esse trabalho".

Fora da tela, McElhenney, que criou e é um dos astros de "It’s Always Sunny in Philadelphia", está em meio a uma transformação, e as coisas são mais difíceis quando o objeto de mudanças é você. Quando a série retornar ao canal FXX para sua 15ª temporada, no começo de dezembro, ela vai superar oficialmente o recorde de "The Adventures of Ozzie and Harriet" como série cômica live-action mais duradoura na história da TV dos Estados Unidos, e o contrato da série já foi renovado até a temporada 18. No Brasil, no entanto, ela não está sendo exibida atualmente.

Ele está iniciando o que define como "segunda metade" de sua carreira. Graças acima de tudo à longevidade de "It’s Always Sunny in Philadelphia", McElhenney está garantido financeiramente pelo resto da vida –poderia parar de trabalhar, se quisesse. Mas mesmo assim, nos últimos dois anos ele ajudou a criar, e estrela em, "Mythic Quest", uma série de humor da Apple TV+, participou do desenvolvimento de uma terceira série roteirizada, e no momento está filmando o documentário "Welcome to Wrexham", que mapeará seu percurso como novo sócio proprietário de um time de futebol no País de Gales. "Só tenho 44 anos", ele disse. "O que mais posso fazer? Ficar sentado e esperar a morte?"

As pessoas que conhecem McElhenney sabem que complacência não é uma opção. Charlie Day, seu colega de elenco e produtor em "It’s Always Sunny in Philadelphia", por exemplo, o descreve como "o sujeito mais motivado que conheço"; Kaitlin Olson, mulher de McElhenney há 13 anos e sua colega de elenco no seriado, o define como "o capitão que você gostaria de ter em seu navio"; Megan Ganz, que criou "Mythic Quest" com McElhenney e Day e é produtora executiva de "It’s Always Sunny in Philadelphia", diz que ele é como "a trilha sonora de 'Rocky' em forma humana".

E, de fato, a distinção entre trabalho e casa parece imprecisa. Algumas horas mais cedo, McElhenney havia me recebido em um escritório que ele construiu atrás da casa que divide com Olson e os dois filhos do casal, em Brentwood, Califórnia. Seu espaço de trabalho –vagamente inspirado por uma cabana de troncos na Pensilvânia– recentemente ganhou um acréscimo que imita o cenário do bar que tem posição central em sua série: banquetas, piso e uma placa em neon em forma de capacete de futebol americano. McElhenney pagou para que o departamento de arte de "It’s Always Sunny in Philadelphia" reproduzisse o cenário em seu escritório.

Leitor –ou mais frequentemente ouvinte– voraz de livros de memórias de pessoas bem sucedidas (um exemplo recente é o livro de Phil Knight, um dos fundadores da Nike), McElhenney fala em tom ponderado e eloquente. Ele só se detém para tomar goles de água, de um copo superdimensionado, ou para cuidar de Moose, o gato que ele e Olson adotaram e gosta de desrespeitar a regra de "nunca suba no balcão".

McElhenney diz que não é engraçado, e até insiste nisso. E parece preferir contemplação e declarações pausadas a brincadeiras, ao discorrer filosoficamente sobre poder e ética, e sobre de onde ele vem e para onde vai.

"Às vezes me apanho fazendo coisas demais porque percebo que estou aqui e tenho uma oportunidade, tenho acesso –quero fazer tudo que puder antes de morrer", ele disse, acrescentando, mais tarde: "Em que momento o acúmulo de experiência se torna cobiça?"

A história de origem que McElhenney conta é uma jornada heroica construída com base na tradição do sonho americano. Um outsider vindo de uma família de classe trabalhadora em Filadélfia desafia as probabilidades e encanta os figurões de Hollywood, conquistando enorme sucesso sem nunca abandonar os amigos.

McElhenney cresceu na parte sul de Filadélfia, e se apegava às comédias de TV como forma de conexão e de escape. Aos nove anos, a mãe dele saiu de casa para viver com a mulher que agora é sua madrasta, e ele, seu pai e seus dois irmãos mais jovens buscavam estabilidade nas noites de humor da rede NBC a cada quinta-feira, acompanhando atentamente "The Cosby Show" e "Caras e Caretas". Nos finais de semana, na casa de sua mãe, o programa preferido era "As Super Gatas".

Trabalhar como ator não era seu projeto inicial. Pequeno e nada atlético, mas sempre em busca de conexão, McElhenney na adolescência por fim abandonou as tentativas de jogar algum esporte em sua escola católica só para meninos, e cedeu à tentação de uma escola feminina vizinha que precisava de garotos para uma produção teatral de "Blithe Spirit", de Noël Coward. Depois de uma passagem breve pela Universidade Temple, ele se mudou para Nova York e por fim para Los Angeles, em busca de trabalho como ator.

A ideia para uma das comédias de maior sucesso na TV nasceu de modo muito modesto, no meio de uma madrugada em 2004, dois anos depois da chegada de McElhenney a Los Angeles. Ele imaginou uma cena em que um cara bate à porta de um amigo para pedir açúcar. O amigo lhe conta que tem câncer. O sujeito que bateu à porta lamenta muito –mas ainda assim precisa de açúcar.

Nas palavras de McElhenney, se a máxima de "Friends" é "pode contar sempre comigo", a de "It’s Always Sunny in Philadelphia" seria "nem pense em me procurar".

Na época, McElhenney morava em uma garagem adaptada em West Hollywood e trabalhava como garçom, e entrou em contato com alguns amigos atores –Day, Glenn Howerton e Jordan Reid (então sua namorada), e lhes mostrou o roteiro. Eles gravaram o piloto original de "It’s Always Sunny in Philadelphia" com uma câmera de mão. Procuraram diversos canais de TV e, de acordo com McElhenney, foi o canal FX, que tinha acabado de surgir, que lhes ofereceu a melhor chance de reter o controle criativo e realizar ao seu modo a série de baixo orçamento que eles tinham planejado.

"Com toda certeza, aquilo era 100% diferente do que eu estava procurando", disse John Landgraf, então presidente de entretenimento no FX, enfatizando a completa falta de experiência de McElhenney como roteirista, produtor ou "showrunner". "Mas era engraçado. Estava claro que ele tinha uma voz".

A FX pagou pela produção de um piloto melhor, e sugeriu que a série teria mais chance de se destacar se os personagens fossem transformados de um grupo de atores egoístas em Los Angeles em um grupo de donos de bar egoístas em Filadélfia, a cidade natal de McElhenney.

Enquanto McElhenney, Day e Howerton esperavam para ver se a série seria produzida, o canal entrou em contato com mais um pedido de mudança: será que eles aceitariam contratar uma atriz diferente para o único papel feminino importante, Sweet Dee, que originalmente serviria como compasso moral da série?

Os rapazes concordaram em procurar outra atriz, e Reid, que já tinha desmanchado com McElhenney, foi cortada, uma experiência que ela descreveu em 2016 em um artigo para o jornal Observer, dizendo ter se sentido traída pelos amigos. (Hoje ela não guarda mais mágoa dos colegas, e voltou a ser amiga de McElhenney, afirmou a atriz em um email. O FX se recusou a comentar sobre a questão de elenco.)

Olson conquistou o papel depois de uma audição, e aos poucos sua personagem foi alterada para que ela se tornasse tão repulsiva quanto os protagonistas masculinos.

"Rob na verdade se desculpou por eles ainda não terem feito aquilo", disse Olson. "Era bem claro que ele tinha interesse especial em fazer que ela fosse igual aos personagens masculinos, o que parecia muito refrescante na época".

Passados 16 anos de sua estreia, "It’s Always Sunny in Philadelphia" continua resolutamente fiel à sua forma grotesca de niilismo, mesmo em meio a uma era de séries mais gentis e amenas, como "Ted Lasso" e "Schitt’s Creek". Mas embora a série continue a manter o compromisso de "satirizar a ignorância", como define McElhenney, ele também admite erros, como o tratamento dado a uma personagem transgênero recorrente, sempre descrita por um epíteto. A impressão era a de que a série, e não seus personagens, defendia aquela forma abusiva de tratamento.

"Não há como mudar as coisas retroativamente", ele disse. "Mas tentamos ajustá-las". Por exemplo, o personagem de McElhenney, Mac, passa por uma tempestuosa jornada de revelação entre as temporadas 11 e 13, que culmina em uma mudança de tom quando ele executa uma pungente dança interpretativa de 4,5 minutos depois de revelar sua sexualidade ao pai, que está preso.

E há o problema do "blackface". Depois dos protestos contra a injustiça racial que varreram os Estados Unidos no ano passado, o serviço de streaming Hulu, que transmite a série no país, removeu diversos episódios que mostravam personagens, entre os quais o de McElhenney, em "blackface". Mas em lugar de permitir que os episódios desapareçam da memória coletiva, a equipe de "It’s Always Sunny in Philadelphia" confrontou o problema na temporada 15, em um episódio que trata da cultura do cancelamento, de expiação e do complexo de salvador dos brancos, enquanto os personagens filmam sua mais recente continuação para a franquia "Máquina Mortífera".

Mas desta vez eles usam atores negros e não atores em "blackface" –entre os quais Geoffrey Owens, mais conhecido por interpretar Elvin em "The Cosby Show", que tinha aparecido em episódios anteriores da série e em "Mythic Quest". O novo episódio também tem um diretor negro (Pete Chatmon) e uma escritora negra na equipe de roteiristas (Keyonna Taylor).

Nos últimos anos, as mudanças no discurso público e a evolução pessoal dos integrantes convenceram McElhenney e a equipe de criação da série a diversificar as perspectivas de "It’s Always Sunny in Philadelphia", embora não estivesse claro de que maneira isso serviria aos personagens preconceituosos da série.

"A série tem por base cinco pessoas brancas e ignorantes, certo?", disse McElhenney. "Por isso, no começo achávamos que nem fazia sentido termos pontos de vista diferentes, ali".

"Mas depois percebemos que, claro, aquele era o ponto", ele disse. "Quem entende melhor qual é a sensação de estar sujeito a pessoas brancas ignorantes do que pessoas que não sejam brancas ou ignorantes? A homens brancos ignorantes, para ser específico".

Mulheres e pessoas não brancas começaram a fazer parte do elenco da série com frequência cada vez maior, um preceito que McElhenney também seguiu ao formar o elenco de "Mythic Quest", recentemente renovada para uma terceira e quarta temporadas. A série se passa em uma companhia de videogames e é estrelada por McElhenney como um criador egocêntrico de jogos eletrônicos e por Charlotte Nicdao, atriz australiana de origem filipina que está fazendo seu primeiro trabalho importante em Hollywood.

Além dos esforços de diversificação de McElhenney, disseram Nicdao e Ganz, ele também vem trabalhando com afinco para oferecer orientação e oportunidade a pessoas que não tiveram a mesma facilidade que ele para ingressar no ramo do entretenimento.

"Como mulher, é sempre desconfortável para mim pedir que uma pessoa interrompa o que está fazendo para me ensinar alguma coisa", disse Nicdao. "O que Rob fez foi criar um ambiente em que não preciso pedir". "Pela primeira vez pensei que eu talvez tenha vontade de me tornar produtora", ela disse. "Talvez queira dirigir. Talvez eu seja capaz de todas essas coisas".

Da mesma forma, Ganz, que conheceu McElhenney quando ela começou a trabalhar em "It’s Always Sunny in Philadelphia" como roteirista e produtora, em 2016, disse que foi ele que a estimulou a estrear como diretora, na segunda temporada de "Mythic Quest". "Rob é meio que um ‘bully’ positivo, porque encoraja muito agressivamente que você saia de sua zona de conforto", ela disse. "Ele acredita em você talvez um pouco mais do que você mesma acredite".

A confiança dele nos outros deriva da confiança que sempre teve em si mesmo e em suas ideias. E essa confiança é contagiante. Alguns anos atrás, o ator Ryan Reynolds começou a trocar mensagens com McElhenney. Ele era fã de "It’s Always Sunny in Philadelphia" e os dois desenvolveram uma amizade online forte o bastante para que McElhenney convidasse Reynolds a se unir a ele na compra de um clube de futebol galês chamado Wrexham, e a produzir uma série documental sobre a experiência. Isso tudo aconteceu antes de eles se encontrarem em pessoa pela primeira vez.

Reynolds aceitou o convite e eles agora estão filmando "Welcome to Wrexham" para o FX. A série fala de um time de futebol decadente mas também sobre "comunidade, sobre aquilo que herdamos e aquilo que legamos", disse McElhenney –o tipo de questão séria que ele se vê ponderando entre seu horário de acordar, 5h, e sua atual rotina noturna de beber um grande Manhattan e assistir reprises de "Succession".

Por mais sincero que McElhenney seja sobre a generosidade de seu segundo ato –sobre a ideia de usar seu sucesso a fim de criar segurança e oportunidade para os outros–, ele está ciente de que em parte é o interesse pessoal que o move. Ao dar oportunidades aos novos talentos que o cercam, ele produz projetos melhores. E a sensação disso tudo é agradável.

"Se é algo que faço em nome do bem ou de coisas positivas? Eu gostaria de acreditar que sim", ele disse. "Mas às vezes, se eu for honesto comigo mesmo, talvez precise admitir que ajo assim porque não sei bem o que estou procurando. Pode ser que eu descubra quando encontrar".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci