Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Cinema

'Sex Education' evolui com personagens não binários e intimidade inclusiva

3ª temporada mostra faixas para os seios e deficiente fazendo sexo

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Laura Zornosa

Layla (Robyn Holdaway) bloqueia a porta do quarto com um cesto, remove uma caixinha de seu esconderijo em uma gaveta repleta de roupas, e a abre para revelar um rolo de bandagens elásticas e uma latinha de alfinetes de segurança.

A cena que se segue, parte da terceira temporada da série “Sex Education”, retrata uma rotina conhecida de muitos jovens não binários e transgênero. Layla –que, como Holdaway, usa pronomes neutros– envolve o peito estreitamente com a bandagem; seu corpo revela machucados e feridas passadas causadas pelo uso incorreto de faixas de compressão.

Mais tarde no episódio, Cal –outro novo personagem não binário da terceira temporada, interpretado por Dua Saleh, que tem origem sudanesa e cidadania americana– mostra a Layla uma alternativa mais segura: um compressor de peito, um traje íntimo, feito quase sempre de nylon e fibras elásticas, que serve para alterar os contornos do corpo.

“Eu usei bandagens Ace, por algum tempo”, diz Cal a Layla, que está experimentando um compressor peitoral emprestado. “Mas quase quebrei uma costela”. Layla se olha no espelho, ri incredulamente e diz, com alegria: “A sensação é muito melhor”.

Laurie Nunn, criadora dessa comédia dramática britânica, diz que apresentar essas interações, detalhadamente e sem firulas, é parte do esforço do programa “para promover o avanço desse diálogo”. “Parecia-me importante que pudéssemos ver dois personagens não-binários se comunicando na tela”, ela disse em uma recente entrevista por vídeo.

“Não é só representação; é ter o máximo possível dela dentro do escopo da série”. Ao longo de duas temporadas, “Sex Education” vem recebendo grandes elogios por suas descrições francas mas sensíveis da sexualidade adolescente.

Na temporada três –já disponível na Netflix— a série alargou seu campo para incluir mais histórias sobre relacionamentos “queer”, representação de gênero, cenas de intimidade envolvendo deficientes físicos e outras experiências raramente exploradas na televisão comercial.

Para fazê-lo de maneira autêntica, mas respeitosa, os produtores recorrem a coordenadores de intimidade e a uma dose saudável de comunicação. “A série se esforça demais para garantir que nossos atores sejam tão protegidos quanto pudermos”, disse Nunn.

Ao mesmo tempo, astros como George Robinson, que, como seu personagem, Isaac, é cadeirante, se veem servindo ao mesmo tempo como atores e consultores, para garantir que os detalhes e a dinâmica de suas cenas sejam exatos. “Obviamente ele está interpretando um papel, mas também está garantindo que as cenas sejam autênticas e fiéis à sua experiência, como ator deficiente físico”, disse Nunn.

Uma das cenas acontece no episódio quatro, quando um jantar romântico entre Isaac e Maeve (Emma Mackey) se torna íntimo. Isaac é paralítico do peito para baixo, como Robinson. Maeve começa a beijá-lo, e depois se afasta. “Você...”, ela principia, mas se detém.

“Você quer saber se eu sinto alguma coisa?”, diz Isaac. “Sim”, responde Maeve. “Bem, não consigo sentir nada abaixo do nível onde fui lesionado”, diz Isaac. “Coloque a mão no meu peito e eu mostro”.

O personagem de Isaac foi concebido originalmente como amputado, mas os produtores decidiram reescrever o papel em torno da deficiência de quem quer que conquistasse o papel. Isaac é pintor, irmão, amante, e, o que tem papel importante na temporada dois, também apaga mensagens de voice mail por ciúmes. Seu senso de humor está repleto de cinismo, como o de Maeve.

Quando perguntado sobre qual tinha sido sua sensação ao filmar aquela cena do jantar, Robinson respondeu via email que “a resposta mais fácil e instrutiva seria dizer que, naquele momento, me parecia um privilégio ser parte de uma cena como aquela, que reflete o momento cultural”.

“Mas vim a perceber que, na verdade, nós (eu, Emma e a equipe de criação) evitamos propositalmente pensar demais sobre a importância da cena, dentro do panorama da televisão, cinema e mídia. Chegamos à conclusão de que ela funcionava dentro da história, e para os personagens naquele momento de seu relacionamento”.

Kelly Gordon, preparadora física na Enhance the UK, uma organização assistencial britânica dirigida por deficientes físicos, e Chris Yeates, coordenador de contato e assistência da Back Up Trust, uma organização que apoia pessoas que sofreram lesões de medula espinhal, servem como consultores para a história de Isaac.

A cena funciona porque ela não gira em torno do fato de que Isaac é cadeirante, mas sim de um momento entre sobre dois adolescentes desajeitados, uma forma de expressar afeto e uma lasanha que termina queimada.

David Thackeray, coordenador de intimidade na série, trabalhou nos oito episódios da temporada três, inclusive na cena entre Isaac e Maeve. Thackeray coreografa cada tomada como se fosse uma sequência de dança ou de combate, mapeando as fronteiras físicas com cada um dos atores, antes da gravação.

“Sentamos todos juntos e discutimos a cena”, ele disse. Marcamos as áreas em que cada ator se sente confortável com ser tocado”, ele afirmou. “Se ela tinha de se sentar no colo de George, nós perguntávamos se os dois se sentiam confortáveis com isso. A comunicação precisa fluir”.

Coordenadores e consultores se comunicam com o elenco constantemente, para determinar se os atores estão confortáveis. Jodie Mitchell, consultora que assessora produções de cinema e TV sobre como tratar personagens e temas não-binários (e também usa pronomes neutros) foi trazida/o para a série originalmente só para trabalhar com os roteiristas.

Mas uma das diretoras da série, Runyararo Mapfumo um dia ligou, querendo verificar detalhes de uma cena que envolvia personagens não-binários. “E depois ela quis que eu fosse ao set, o que acredito que seja uma indicação de o quanto esse programa deseja acertar”, disse Mitchell em entrevista.

“Não é uma simples pose, ou ticar uma lista de itens, como se eu estivesse apenas carimbando que algo é OK. Eles realmente querem seguir esse procedimento em todos os detalhes que puderem”. Mitchell trabalhou por três dias no set, se concentrando em histórias não-binárias da trama, principalmente as cenas envolvendo Cal e Layla, e o uso da bandagem peitoral.

Holdaway, que interpreta Layla, tinha a escolha de ter um coordenado de intimidade presente em todas as cenas. “Mas para algumas das cenas das bandagens, especificamente, o que eles queriam era ter alguém na sala que fosse trans e tivesse tido aquela experiência”, disse Mitchell. “E por isso eu fiquei no estúdio”.

Salej, que interpreta Cal e também usa pronomes neutros, era poeta e musicista antes de começar a trabalhar como ator (seu terceiro disco sai em 22 de outubro). Embora tenha trabalhado em algumas peças “queer” e transgênero (“WAAFRIKA 1-2-3”) e em grupos de teatro (20% Theatre Company, de Minneapolis), “Sex Education” foi sua estreia na TV.

Em uma produção teatral da qual participou, “tínhamos muitas cenas de intimidade, mas não havia um coordenador”, disse Saleh em uma entrevista por vídeo no mês passado. “Por isso, quando cheguei à série, fiquei surpresa/o com os cuidados e consideração deles para com nossos corpos e as maneiras pelas quais podíamos estabelecer limites uns com os outros e dizer que não estávamos confortáveis com certas coisas”.

Como outros dos atores de “Sex Education”, Saleh é fã da série, além de um de seus protagonistas, e se emocionou com alguns momentos importantes da temporada. Saleh se comoveu especialmente com as cenas que retratam Eric Effiong (Ncuti Gatwa), um personagem gay de origem nigeriana e ganesa que comparece a um casamento de um parente na Nigéria.

Eric sai da festa de casamento para ir a uma casa noturna underground onde pessoas “queer” e que não respeitam normas de gênero se divertem sem medo. “Quando eu era adolescente, se tivesse visto essa série, eu não teria sentido coisas tão negativas sobre mim, simplesmente por ser quem sou”, disse Saleh. “Eu não teria sentido tanta vergonha por simplesmente existir”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci