Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Cinema

Jared Harris fala como saiu da sombra do pai com 'Mad Men' e 'Chernobyl'

Com trabalhos memoráveis, ator de 60 anos está agora em 'Foundation'

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Noel Murray

Pergunte a David Goyer, criador da série “Foundation”, por que Jared Harris, 60, foi sua primeira escolha para estrelar o ambicioso projeto da Apple TV+, e ele apontará para um momento significativo durante a gravação.

“Foundation” é um texto fundamental de ficção científica desde que Isaac Asimov escreveu as primeiras histórias da série, na década de 1940. Harris interpreta Hari Seldon, um dos personagens mais conhecidos do gênero: um homem temperamental e de intelecto poderoso, remoto e retratado quase sempre na forma pela qual os outros o veem. É um papel para o qual é complicado escrever, e que é ainda mais difícil de interpretar.

“Por sua natureza, Hari era alguém que gostava de se manter distante”, disse Goyer. Mas, ao mesmo tempo, “ele é o traço de união emocional e intelectual da história”. Assim, no final de uma cena em que Hari detalha profecias apocalípticas, Goyer pediu que o diretor mantivesse as câmeras rodando depois que Harris concluiu sua fala.

“Embora ele não estivesse mais falando verbalmente, eu queria sentir o peso imenso que pende sobre os ombros daquela pessoa”, disse Goyer. A cena foi estendida por tempo suficiente para que Harris, sem abandonar o personagem, relaxasse com um suspiro, transmitindo silenciosamente a ideia da pessoa que Hari realmente é quando ninguém está olhando.

Foi um gesto sutil e intuitivo, para tornar um pouco mais real a pessoa conhecida em “Foundation” como “o homem mais inteligente da galáxia”. Se você conversar com qualquer pessoa que tenha trabalhado com Harris, ouvirá histórias semelhantes sobre seus momentos de graça na interpretação, e sobre sua atenção aos menores detalhes de seus personagens.

Naren Shankar, roteirista e produtor da série de ficção científica “The Expanse”, disse que Harrison construiu boa parte de seu carismático personagem na série, o agitador Anderson Dawes, em torno das tatuagens que ele carrega, e trabalhou com os roteiristas para compreender toda a história por trás da tinta.

Matthew Weiner, criador da série “Mad Men”, descreveu a maneira pela qual Harris ditou o tom de toda uma cena ao simplesmente ajustar a gravata de seu personagem, Lane Pryce, no final de uma noitada de bebedeira e excessos –um gesto que não constava do roteiro mas revelava muito sobre um homem que busca reafirmar sua dignidade em um momento nada digno.

Ele é descrito por muita gente como um ator que se prepara cuidadosamente, propõe questões desafiadoras aos seus colaboradores e sempre consegue expor o lado frágil e humano de seus personagens, por mais pesado que seja o material.

Harris trabalhou muito nos últimos cinco anos, ancorando dramas complexos como “The Terror” e “Chernobyl” e ao mesmo tempo aceitando papéis menores em trabalhos de elenco como “The Expanse”, “The Crown” e “Carnival Row”. A esta altura de sua carreira, disse o ator em uma conversa por vídeo recente, ele procura projetos com bom texto e nos quais a equipe de criação esteja aberta à colaboração.

“Quase sempre faço uma pergunta à pessoa com quem estou conversando, no estágio inicial de definir se vou participar ou não do processo”, ele disse. “Que tipo de relacionamento vocês querem ter com o ator?”

Harris estava falando da região Amish da Pensilvânia, onde está fazendo um filme. (Quando não está trabalhando, ele a mulher, Allegra Riggio, dividem seu tempo entre Los Angeles e Nova York.) Em conversa, como sugeriram pessoas que já trabalharam com ele, Harris está sempre repleto de ideias e pronto a fazer perguntas à pessoa com quem está dialogando, para se aprofundar mais nos assuntos.

É um processo que roteiristas de TV como Goyer, Weiner e Shankar apreciam especialmente, porque fazer uma série de TV requer muito tempo e, se os atores se dedicarem a fazer com que cada cena pareça mais viva, isso com certeza ajudará.

Harris descreveu o modo pelo qual trabalha com roteiristas e diretores como “desenvolver a maneira pela qual vamos chegar até onde eles querem que a história chegue”. “Não é que você mude a história, mas às vezes encontra caminhos diferentes para chegar lá”, disse Harris.

UM PROFISSIONAL ENTRE OS PROFISSIONAIS

Depois de passar os primeiros 20 anos de sua carreira interpretando quase sempre personagens secundários, em filmes independentes como “Um Tiro para Andy Warhol” e “Happiness”, Harris estava chegando aos 50 anos quando foi escalado para “Mad Men”, em um papel que terminou por representar sua oportunidade tardia de sucesso.

Foi a passagem dele pela terceira temporada da série como Lane Pryce, um executivo financeiro britânico engomadinho que assume grandes riscos ao aceitar um emprego em uma agência de publicidade em Nova York, que enfim permitiu que saísse da longa sombra de seu pai, Richard Harris, um dos atores mais reverenciados do século 20.

Weiner viu os paralelos entre Pryce e Harris: um profissional em meio a outros profissionais, respeitado mas talvez desconsiderado, e revigorado pela oportunidade de se reinventar nos Estados Unidos. “Ele teve uma vida muito interessante”, disse Wainer sobre Harris. “Sabe bem quem ele é, e quem Pryce era”.

Da mesma forma, em “The Terror”, uma série da AMC –que Harris vê como um de seus melhores trabalhos, em companhia de “Mad Men” e de “Chernobyl”–, ele interpretou um oficial de Marinha desanimado que redescobre a vontade de sobreviver em uma expedição ártica que encontra problemas. David Kajganich, roteirista e produtor da temporada da série estrelada por Harris, descreve um dos raros papéis principais já oferecidos ao ator como algo que refletia parte de sua experiência: “Um homem que provou seu valor como marinheiro inúmeras vezes, mas jamais foi colocado no comando de uma expedição”.

Ele é filho de Richard Harris e da atriz Elizabeth Rees Williams, e na década de 1970 foi enteado de Rex Harrison, com quem sua mãe foi casada por alguns anos. Harris cresceu como um menino tímido, e seus pais recomendaram que ele considerasse uma carreira como educador ou advogado.

Mas nenhuma dessas profissões o interessava. Quando ele começou a pensar em fazer uma universidade, a única coisa de que ele tinha certeza era “que eu queria sair da Inglaterra por algum tempo”, disse Harris.

“Eu queria ir a algum lugar onde ninguém soubesse coisa alguma sobre mim ou sobre minha família”, ele acrescentou, “para que eu pudesse começar a descobrir quem eu era realmente”.

Ele foi parar na Universidade Duke, na Carolina do Norte. (Saboreando a ironia, Harris diz que, um “cara branco e inglês” como ele foi incluído na cota de diversidade da escola, por ser estrangeiro.) Lá, ele encontrou lugar no departamento de teatro, ao ser escalado para a peça “Uma Morte Anunciada”, baseada em Agatha Christie.

“Eu amei a adrenalina”, ele disse. “Amei o medo. Amei a camaradagem. Amei a necessidade de aprender a conhecer os colegas rapidamente. Todas aquelas regras restritivas que estabelecemos para nós –especialmente entre os ingleses– tinham de desaparecer correndo.”

Essa energia de “todos estamos juntos nisso” continua a ser parte do que atrai Harris no trabalho. Lee Pace, que interpreta um imperador galáctico em “Foundation”, disse que embora ele contracene com Harris apenas no primeiro episódio da série, os dois saíam juntos para jantar regularmente, e trocavam ideias.

“O trabalho de Jared tem um lado científico”, disse Pace. “Venho do teatro, e por isso aqueles momentos em torno da mesa são inestimáveis para mim, quando você pode dizer tudo que passa pela sua cabeça e ouvir as respostas de outras pessoas inteligentes”.

LIÇÕES DE HISTÓRIA

Se considerarmos que o pai de Harris, morto em 2002, era tão conhecido por suas traquinagens embriagadas quanto por seus desempenhos fascinantes, pode parecer estranho dizer que os dois compartilham de uma ética de trabalho. Jared Harris admitiu que as histórias sobre os atores da geração de pai, muito amigos da bebida, eram quase todas verdade, mas também insistiu em que eles gostavam de exagerar essa imagem como forma de obter publicidade.

“O fato é que aqueles caras todos, todos eles, levavam suas carreiras muito a sério”, disse Harris. O pai dele alimentava sua imagem de arruaceiro “às vezes em detrimento de sua reputação como ator. Porque agora ele é conhecido como ‘Richard Harris, o encrenqueiro’. Isso vinha sempre em primeiro lugar”.

Às vezes os filhos de celebridades se incomodam com menções aos seus laços familiares, mas mencionar Richard Harris faz com que o rosto de seu filho se ilumine. (E cometer o erro de se referir a Richard Harris, um irlandês muito orgulhoso de suas origens, como parte da grande tradição do teatro inglês vale uma reprimenda brincalhona: “Inglês não! Isso dá briga!”)

Harris se orgulha de sua conexão com aquele legado teatral –não só o de seu pai, mas o de Peter O’Toole, Laurence Olivier, Richard Burton e todos os demais.

“Cresci admirando eles todos como mentores distantes, figuras a reverenciar, e sempre tentei descobrir como eles faziam o que faziam”, ele disse. “Mas a tradição americana também me atraía muito, e assisti a Montgomery Clift e James Dean e Brando, Hackman e Hoffman, e Pacino e De Niro. Sempre tentando descobrir como eles fazem o que fazem. Como é que Robert Duvall faz o que ele faz?”

Harris teve de se esforçar para convencer os pais a irem assistir aos seus espetáculos, quando ele estudava na Duke.

“Para ser honesto, nenhum dos dois tinha qualquer expectativa, esperança ou confiança de eu faria mais do que passar vergonha no palco”, ele disse. Seu pai por fim cedeu e foi assistir ao trabalho do filho, que àquela altura já estava formado, na peça “Entertaining Mr. Sloane”.

“Lembro-me claramente de ter ouvido a primeira risada dele na audiência, nos cinco minutos iniciais da peça”, disse Harris. “Ele ficou realmente surpreso, e emocionado”.

Eles saíram para jantar naquela noite, e Richard Harris subitamente parecia ansioso para contar casos e oferecer dicas ao filho, de colega a colega.

“Eu nunca me cansava de ouvi-lo descrever as grandes interpretações a que assistiu”, disse Harris. “Olivier como Coriolano, Paul Scofield como Hamlet. Ele reproduzia as cenas, e discutia por que o ator tinha decidido fazer determinada coisa em determinado momento”.

O que Harris extraiu dessas conversas foi a compreensão de que até mesmo o menor dos gestos de um ator pode ajudar a “definir o mundo” do personagem.

Em “Foundation”, essa ênfase em detalhes finos foi crucial, porque ele estava interpretando alguém que não pode revelar tudo que sabe. (Esse ar de mistério se estende a falar sobre a série em si, que traz numerosas reviravoltas que os atores e roteiristas ainda não podem revelar.)

“Você interpreta alguém que esconde bem suas cartas”, disse Harris. “E isso é divertido, porque ter um segredo é uma coisa importante e útil, como ator. Mesmo que você esteja fazendo um papel de carteiro ou entregador de leite, poder levar a audiência a inferir a existência de uma vida interior é uma das principais tarefas de um ator”.

Às vezes a preparação de Harris pode ser sutil, como em sua interpretação do general Ulysses Grant, em “Lincoln”, para a qual ele se apegou ao detalhe histórico de que o general sempre guardava bitucas de charuto no bolso da túnica. E às vezes sua compreensão profunda do material resulta em poesia, como na cena de “Mad Men” em que Lane Pryce sela seu destino ao falsificar uma assinatura e depois abanar o papel para fazer com que a tinta seque, como se, de acordo com Weiner, ele estivesse “fazendo um aceno de adeus”.

Solicitados a definir o que de especial Harris traz para um projeto, diferentes colaboradores ofereceram diferentes respostas. Weiner falou de como Harris consegue ser, ao mesmo tempo, “emotivo” e “não sentimental”.

“Quando o personagem entra em contato com suas emoções, isso só acontece com grande dificuldade, como se a pessoa não conseguisse mais segurar aquela emoção, mas ao mesmo tempo se arrependesse por revelá-la”, disse Weiner. “É muito doloroso e muito profundo”.

Já Harris não acha que exista alguma área de destaque especial, em sua técnica. “Tento despistar a plateia o tempo todo”, ele disse.

“Brando fala de convidar a plateia a segui-lo em uma caminhada pelos becos de uma cidade”, ele acrescentou. “E você vira imprevisivelmente para a esquerda e para a direita, e tenta despistar os perseguidores”. “E aí você deixa que eles se aproximem de novo”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci