Cinema e Séries
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Como Paul Raci, de 'O Som do Silêncio', foi de pontas na TV a indicação ao Oscar

Sucesso demorou para Raci, que recebe a 1ª indicação aos 72 anos

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Kyle Buchanan

The New York Times

"Ser ator por todo esse tempo —mais de 40 anos na batalha— e aí receber essa aclamação é uma loucura, cara", diz Raci, recentemente, no quintal de sua casa em Burbank.

Pela maior parte de sua carreira, Raci teve de se conformar com papéis de uma ou duas linhas de diálogo, em programas de TV como "Parks and Recreation" e "Baskets". Mas, então, Darius Marder, o diretor de "O Som do Silêncio", tirou o ator da obscuridade e lhe deu o papel mais importante de sua vida.

Joe, o estoico, mas sensível líder de uma comunidade que promove a sobriedade entre os deficientes auditivos, e que acolhe um problemático baterista punk chamado Ruben (Riz Ahmed). É um papel que ecoa a realidade, para Raci, que cresceu em Chicago como CODA (na sigla em inglês para filho de adultos surdos) –e, como Joe, enfrentou problemas de vício de toda natureza, depois de servir no Vietnã. "Sempre digo que cheguei ao Vietnã como John Wayne e saí como Lenny Bruce", afirma Raci.

Uma vida toda passada como intérprete de seus pais junto às pessoas de audição regular instilou em Raci o amor pelas artes cênicas, mas, quando ele se mudou para Los Angeles, décadas mais tarde, em busca de uma carreira como ator, não encontrou muitos papéis. "Faço isso há muito tempo, e sempre soube do que era capaz, mas o mercado não tinha lugar para mim", diz.

Raci continuou batalhando, mesmo assim, trabalhando durante o dia como intérprete da língua de sinais no sistema do Tribunal Judiciário Superior do Condado de Los Angeles, e aperfeiçoando suas capacidades como ator em produções do Deaf West Theater a cada noite.

"Eu sempre pensava comigo mesmo que meus talentos eram tão específicos que não existiam papéis para mim", diz Raci, que é pequenino, rijo e tatuado, e ostenta cabelos compridos como os de um roqueiro. "Imaginava que teria de esperar por um papel específico." E o papel um dia chegou.

Confira trechos editados da conversa.

Como foi a manhã do anúncio das indicações ao Oscar?
Bem, não tenho despertador –tenho um relógio mental, mas por qualquer que fosse o motivo, ele não estava funcionando naquela manhã. Eu deveria ter me levantado às 5h, e às 5h25min minha mulher e eu acordamos. "Oh, perdemos a indicação." Corremos para a sala para ligar a TV e, quando a imagem entrou, eles estavam anunciando o segundo indicado a melhor ator coadjuvante. E aí [a apresentadora Priyanka Chopra Jonas] disse "e Paul Rá-ci". Eu comentei: "É Paul Rêi-ci, e aceito a indicação."
Meu telefone começou a tocar às 5h30min. Pessoas apareceram para me dar vinho de presente, trouxeram petiscos –não do tipo que você está pensando, mas cupcakes, e frutas cobertas de chocolate. Eu disse: "São seis horas da manhã, Hillary!" Minha mulher chorou, minha filha chorou. O dia todo foi assim, bem empolgante.

E como as coisas ficaram, depois que a poeira assentou?
Seis dias depois, olhei para a minha mulher e perguntei se aquilo tinha mesmo acontecido. Mas mesmo tendo de esperar por todo esse tempo, valeu a pena, cara. Um bom amigo me mandou um email dois dias atrás, dizendo: "Paul, não só uma indicação ao prêmio de melhor coadjuvante, é como que um prêmio por toda uma vida de trabalho". Não tinha pensado na coisa dessa forma, mas sinto ter muito trabalho a fazer ainda. A indicação adicionou 20 anos à minha vida.

Você faz pontas há décadas, no cinema e na televisão. Como fez para transformar esses trabalhos em papéis significativos?
Para ser honesto, esse lado era mais negativo que positivo, porque em sua cabeça é uma demonstração de que você é um fracasso. Eu não conseguia audições para papéis regulares em séries. Não conseguia entrar na sala, porque "precisamos de um nome conhecido". Graças a Deus pelo Deaf West Theater; não fosse por eles, onde mais eu poderia exercitar minha capacidade como ator? Não tinha papel algum. Mas você segue em frente, de trabalho a trabalho, na esperança de que alguma coisa vai aparecer.

E como é que enfim aconteceu? Quando você fez a audição para o papel de Joe em "O Som do Silêncio", teve algum sinal de que as coisas poderiam ser diferentes daquela vez?
Gravei minha audição em vídeo, enviei, mas me tirei o assunto da cabeça imediatamente –porque, de verdade, essas coisas nunca acontecem, para mim. Quando saio de uma audição, rasgo as páginas da cena e jogo no lixo.
Não vou ficar me preocupando com coisas que só me fazem sofrer. Mas minha mulher, que é minha agente, ligou para o escritório de seleção de elenco para perguntar se tinham visto meu vídeo. E eles disseram que tinham pilhas de vídeos, e que nem conseguiam encontrar o vídeo de minha audição, e o mais provável era que contratassem um ator conhecido.
Robert Duvall, Forest Whitaker, era esse ator que estavam procurando. Mas meu vídeo de audição era bem forte, e minha mulher pediu para procurarem por ele. Dez minutos mais tarde, o telefone tocou e disseram que "Darius quer conversar com Paul". Uma semana mais tarde, ele veio me visitar, e conversamos por muito tempo.

Deve ser ótimo ter uma mulher que batalha por você, nesse sentido.
Ela é agente por aqui há mais de 20 anos, em escala pequena, tentando competir com a CAA e a ICM. Ela tem uma pequena agência, e disse que só a fecharia quando eu me tornasse astro. Sempre batalha para me conseguir reuniões, e nunca tinha dado certo. Eu estava tão acostumado a rejeições que, mesmo no fim de minha conversa com Darius, eu questionei: "Você vai me oferecer mesmo o papel?" E ele respondeu que sim. Mas inicialmente eu disse que não ia fazer o filme.

Por que não?
Olha, tenho que pagar as prestações da minha casa. Não se tratava do grande filme que eu esperava. O orçamento era pequeno, e eu ganharia mais ficando em Los Angeles e trabalhando no tribunal do que eles estavam me oferecendo. Eu teria de viajar até lá [perto de Boston], para um projeto que me colocaria no buraco financeiramente? Não dava para arcar com isso, e minha família nem tem plano de saúde. Por isso, eu disse a minha mulher que avisasse a Darius que eu não estava interessado.

Mesmo? Isso exige coragem.
Bem, o filme parecia ótimo, mas sou um cara trabalhador, humilde, como meu pai, e tinha de pagar as contas. Darius me ligou e disse que eu não podia recusar, que eu não entendia a importância do filme. Eles deram um jeito de me pagar uma diária maior. Ele foi muito flexível comigo, e eu sabia que o coração dele estava no lugar certo. Ele respeitava demais meu ponto de vista, minha experiência como CODA, e senti que podia confiar nele.

Depois de subsistir muito tempo com papéis pequenos, qual foi a sensação de fazer cenas tão longas com Riz Ahmed?
Maravilhosa. Uma realização. Eu tive muitos momentos assim em um teatro de 99 lugares, mas poder capturá-los em filme foi incrível para mim. E dividir a cena com alguém brilhante como Riz foi como realizar um sonho. Na nossa primeira cena, quando ele está sentado diante de mim e eu pergunto como vão as coisas, a dor dele é tão intensa. Ele fica sentado ali, demora muito a começar a falar. E foi uma cena tão real! Partiu meu coração. Sempre serei grato a Riz Ahmed. Não sei se poderia ter feito as cenas com qualquer outro ator, porque foram tão intensas. Na nossa última cena juntos, vi com o canto do olho, na hora em que disseram "corta", que Darius Marder estava lá em pé, chorando.

Você é filho de adultos surdos, mas tem audição. Será que se pode argumentar que Joe deveria ter sido interpretado por alguém surdo ou com deficiência auditiva?
Sim, esse é um argumento que algumas pessoas defenderiam, na comunidade dos deficientes auditivos. Mas eu poderia rebater que, porque sou CODA, sou parte da cultura, fui criado nela. Eu jamais tiraria um papel de um ator surdo que seja culturalmente surdo, mas Joe é um cara que perdeu a audição mais tarde na vida.
É uma questão à qual sou sensível, e consultei a algumas pessoas antes de ir adiante. Disse a Darius que não me sentia confortável com o personagem ser surdo, e perguntei se ele não podia ser CODA. Ele respondeu que a ideia era interessante, e me pediu um prazo para pensar. Ele tinha três consultores surdos no set, e os três disseram a Darius que não, que seria mais convincente que o personagem fosse surdo, que existisse esse paralelo tão forte entre Ruben e Joe.
O bom é que agora tenho conexões com a Amazon [distribuidora de "O Som do Silêncio"], e eles me procuraram pedindo conteúdo. Escrevi algumas coisas, conheço outros escritores surdos, e por causa dessa conexão, achoo que algumas portas serão derrubadas, porque as pessoas estão interessadas no que tenho a dizer, agora.

Você já decidiu qual será seu próximo projeto?
Agora tenho o "Time Paul", empresários, um advogado, e o time me aconselha a ser cuidadoso na escolha do meu próximo papel. Já recebi –juro por Deus– oito, nove, dez propostas. E antes não me ofereciam coisa alguma! Mal posso esperar para começar a trabalhar de novo, mas serei um pouco mais seletivo, e não há problema nisso.

Você tem outras metas de carreira planejadas?
Amo Bill Murray. Ele tem a mesma idade que eu. Não quero tirar papéis dele, mas certamente gostaria de atuar com ele. Eu costumava fantasiar e meditar sobre coisas assim, porque por anos eu sempre orei que "nada é tão bom que não possa acontecer. Tudo é possível". Ainda que parte de mim não acreditasse naquilo, a oração acreditava em mim, e me ajudava a superar. É preciso perseverar, mesmo que você não tenha crença em você mesmo. Se isso vale para mim, vale para todos.

Tradução de Paulo Migliacci.