'Papel do príncipe Philip é tão estranho', diz Tobias Menzies, ator de 'The Crown'
Astro fala sobre interpretar duque e equiparação de salário entre atores e atrizes
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A fama é problemática, para um ator. Um excesso dela gera riscos profissionais, diz Tobias Menzies, 46. "Há uma coisa química profunda que muda quando alguém se torna muito, muito visível; o mundo se transforma, para aquela pessoa."
"Gosto de ter a capacidade de observar o mundo sem que este me observe de volta tanto assim", ele acrescenta. "Boa parte do trabalho de um ator é observar o comportamento, o jeito de ser das pessoas, a forma pela qual elas vivem." A celebridade afeta a maneira pela qual o desempenho de um ator é encarado, igualmente. "Eu preferiria não saber quem um ator está namorando, e nem permitir que a estática de sua biografia interfira com o trabalho."
A fama também depende de quem esteja observando. Se recorrermos à mídia social como um indicador grosseiro, Menzies é modestamente famoso: 148 mil seguidores no Twitter, comparado, por exemplo, aos quatro milhões de seguidores de Sir Ian McKellen. Se o critério for o número de pessoas que o incomodam na rua, ele é mais famoso nos Estados Unidos, por seus papéis nas séries de TV "Rome", da HBO, e "Outlander", do canal Starz, do que no bairro em que mora no norte de Londres, Kentish Town.
Menzies afirma que não conseguiria "lidar com muita coisa, de qualquer forma". É uma declaração que eu descartaria como falsa modéstia, vinda de outro ator. É o tipo de coisa que atores costumam dizer e, além
disso, surgiu durante uma entrevista sobre sua retomada do papel de príncipe Philip na mais recente temporada da série "The Crown", uma grande produção da Netflix.
Mas ele encara seu trabalho com profunda seriedade. Um amigo de Menzies que trabalhou com ele descreve sua abordagem como ponderada e intensa; ele se dedica totalmente a um papel, um processo que no passado poderia ser descrito como "método". É uma postura que em certas situações pareceria falsa, mas Menzies demonstra animação e engajamento, durante nossa conversa. E também pragmatismo: ele sabe que a fama é uma moeda que pode "influenciar sua carreira" e abrir as portas a papéis mais empolgantes e cachês maiores.
Talvez mais vizinhos passem a reconhecê-lo depois de sua segunda temporada no papel do príncipe Philip, que requereu que ele descolorisse as sobrancelhas e usasse uma peruca loira, ainda que a mandíbula firme e os sulcos verticais que caracterizam seu rosto tenham permanecido intactos.
Mais de 70 milhões de domicílios em todo o mundo já assistiram à série dramática criada pelo dramaturgo britânico Peter Morgan em 2016, supostamente uma das produções mais dispendiosas na história da televisão. Na temporada anterior, que cobria o período de 1964 a 1977, Menzies assumiu um papel antes interpretado por Matt Smith, com Olivia Colman como a rainha Elizabeth 2ª. O trabalho lhe valeu uma indicação ao Globo de Ouro.
A mais recente temporada trata da chegada da princesa Diana à família e do impacto que a fama teve sobre seu casamento com o entediante príncipe Charles. O período também viu a ascensão e queda de Margaret Thatcher como primeira-ministra. O retrato fictício da rainha e do príncipe Philip é um tônico para a audiência de 2020, ao oferecer o reconfortantemente pensamento de que existe alguém no controle.
Como preparação, Menzies assistiu a imagens de TV para estudar a postura e voz do duque de Edimburgo, mas também para compreender sua personalidade. "É um papel tão estranho [o de Philip], altamente
cerimonial, mas sem muito poder concreto". O ator diz que existe uma tensão entre o papel coadjuvante do príncipe e o fato de ele ser "um macho alfa, claramente muito ativo... alguém que gosta de se manter
ocupado, gosta de fazer".
Esse conflito –se uma descrição como essa pode ser aplicada à família real– definiu o caráter de Philip na temporada passada, algo que foi cristalizado em um episódio que o viu passar por uma crise existencial gerada por seu sentimento de impotência, em contraste com as ambições desmedidas dos astronautas americanos que estavam se preparando para a corrida lunar. Na mais recente temporada, Philip parece conformado com sua posição e a trajetória do personagem é mais sutil, e se concentra na relação dele com a família.
O primeiro episódio se concentra no atentado do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), que causou a morte do lorde Mountbatten, em 1979. Uma cena entre Philip e Charles mostra a complexidade do relacionamento entre pai e filho, duas pessoas que emocionalmente representam um enigma uma para a outra.
Philip rascunha uma espécie de triângulo amoroso familiar no qual Mountbatten interpreta um papel paterno para ambos. "Eu mal conheci meu pai", ele diz. "Dickie [Mountbatten] compreendia isso e assumiu o papel, o que foi importante demais para mim. E anos depois, quando ele viu as dificuldades que existiam entre nós, ele mudou de função e passou a cuidar de você; deixei de ser a prioridade."
Menzies, cujo desempenho como Philip é caracterizado tanto pelo que ele não diz quanto pelo que diz, se interessa pela inversão de papéis entre os dois homens. "Philip é a figura mais infantil... e Charles tem o
papel um pouco mais adulto. Parece haver diversas indicações circunstanciais de que o relacionamento entre eles nunca foi muito direto. Philip obviamente não se sente confortável diante da sensibilidade que Charles parece ter."
A contradição central, para Menzies, é compreender a psicologia de um homem que rejeitaria a ideia mesma de análise. "Ele provavelmente não gostaria da forma pela qual a cena foi realizada", reflete o ator.
O retrato cheio de empatia não oferece indicação da discordância de Menzies com relação ao conceito de monarquia hereditária. Trabalhar em "The Crown" fez com que ele compreendesse "os benefícios... e a
continuidade, especialmente em momentos como o atual, em que as coisas estão instáveis. Mas minha posição política mudou fundamentalmente? É provável que não".
Menzies, que costuma votar no Partido Trabalhista ("mas flertando ocasionalmente com os liberais democratas"), descreve "The Crown" como "relativamente apolítico", ainda que a carismática interpretação de Gillian Anderson como Margaret Thatcher seja um lembrete do impacto desordenador –criativo para alguns, destrutivo para outros– da líder conservadora sobre a sociedade britânica.
Isso é explorado no episódio em que Michael Fagan invade o dormitório da rainha, em 1982. A justaposição entre Fagan, retratado como vítima das políticas de Thatcher, e a rainha, vivendo protegida na opulência do Palácio de Buckingham, se torna uma maneira de observar o país pelo prisma das duas personalidades. Menzies admite que "Thatcher é a primeira-ministra mais divisiva que a série tentou representar. Pode haver alguma resistência, desta vez".
As filmagens de "The Crown" foram concluídas duas semanas antes que o lockdown começasse no Reino Unido. Como ele passou o período? "Honestamente, para mim foi difícil, especialmente para alguém que mora sozinho e para quem conviver com os amigos é parte importante da vida... Sinto falta de abraços."
Consciente de sua boa saúde e da situação financeira favorável em que vive, ele se inscreveu para trabalho voluntário por meio do app do Serviço Nacional de Saúde britânico. Ao falar sobre deveres sociais, ele deslizou brevemente para a terceira pessoa: "Você tenta fazer o que pode porque a sensação é de impotência".
O lockdown também revelou que ele é "um tanto 'workaholic'. O trabalho me mantém centrado. Senti falta do ritmo natural das filmagens. Eu costumava ir ao teatro, ver espetáculos e também trabalhar neles, é claro". Dado o efeito da pandemia sobre as organizações artísticas, Menzies se sente compreensivelmente preocupado com o futuro cultural britânico. "O governo atual parece ter um relacionamento complicado com as artes. É difícil não achar, ocasionalmente, que isso acontece por motivos ideológicos."
Menzies se preocupa também com o impacto da situação sobre os atores jovens. "Meus primeiros anos de trabalho foram dedicados principalmente ao teatro, às vezes em trabalhos regionais, viajando pelo país, aprendendo meu ofício e cometendo erros, mas aprendendo; o teatro é uma escola excelente para isso."
Rupert Goold, diretor artístico do Almeida Theatre, é amigo de Menzies há 20 anos e trabalhou com ele em numerosas peças, entre as quais "Hamlet" e, no ano passado, "The Hunt", adaptação para os palcos do filme dinamarquês homônimo de Thomas Vinterberg. Ele diz que embora Menzies adore companhia e conversar, "ele é uma pessoa inerentemente reservada... no palco, ele se abre".
"A abordagem dele quanto a ensaios é que eles são apenas uma parte de um trabalho que dura 24 horas por dia, sete dias por semana", disse Goold. "Ele é sempre curioso –ama a arte, gosta de dança, de belas artes. E é muito inquisitivo. É preciso ser uma pessoa muito singular para ser um artista digno do nome... Ele continua a amar, acima de tudo, o lado curioso da criatividade. Nos atores, especialmente nos homens que passaram dos 40 anos, isso se torna mais raro, mas acredito que nele continue a existir."
Ao mesmo tempo, Goold vê em Menzies um distanciamento que lhe permite "falar sobre atuar de forma objetiva, ver com inteligência qual seu papel é na obra –às vezes os atores não percebem que são contrapontos na história".
O amor de Menzies pelo teatro foi fomentado por sua mãe, professora que se divorciou do pai dele, produtor e roteirista de rádio da BBC, e se mudou com Menzies, que tinha seis anos, e seu outro filho de Londres para o condado de Kent. Depois de terminar o segundo grau, ele foi para Stratford-upon-Avon para descobrir o que desejava fazer. "Trabalhei como ator, diretor, produtor de som e figurinista... era o começo da década de 1990, o pico do teatro físico, do teatro visual, do teatro de dança, Ballet Rambert."
Foi só na Academia Real de Arte Dramática que ele foi "contagiado" pela vontade de atuar. Depois de se formar, um papel ocasional mas duradouro na série médica de TV "Casualty" lhe ofereceu "treinamento diante das câmeras". Em 2005, ele interpretou Marcus Junius Brutus na série "Rome", da HBO, na era que viu a "explosão da televisão".
Exceto "The Crown", ele diz, "todos os meus trabalhos significativos em televisão foram para companhias americanas. Sou levado mais a sério lá [nos Estados Unidos], e isso começou por conta de 'Rome'". A série
também lhe ofereceu outras oportunidades que vão além da atuação."“Quando você apanha um projeto bem no começo, pode contribuir muito em termos criativos... Isso certamente se aplica a ‘Rome’ e a séries como 'Outlander'".
"Outlander", uma série que envolve viagens no tempo, vê Menzies se alternar entre dois papéis –o honrado historiador Frank Randall, nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, e o capitão Black Jack
Randall, um militar sádico do século 18 que combate os escoceses das Highlands. A revista Rolling Stone classificou Randall como um dos grandes vilões de TV de todos os tempos, "lançando olhares furiosos e
grunhidos em cada cena como se fosse um homem incapaz de experimentar qualquer prazer, exceto à custa de outras pessoas".
A série se tornou o grande papel da carreira de Menzies, valendo-lhe sua primeira indicação para o Globo de Ouro, mas ele diz que "no começo, ninguém se interessava pelo que estávamos fazendo na Escócia, éramos todos quase desconhecidos. Na primeira temporada, os diretores e roteiristas, os responsáveis pela série e nós, formamos o trabalho juntos. Esse aspecto, de estar realmente envolvido no dialogo criativo, é muito bom". O desafio agora é como tratar a evolução do personagem ao longo do tempo.
"Game of Thrones", em que ele interpretou o papel de Edmure Tully, foi muito diferente. "Eu mergulhei de cabeça em um projeto que há estava muito bem encaminhado, e saí ao concluir meu trabalho." Já "The Crown" envolveu uma experiência também diferente, porque ele teve de interpretar um papel cujo tom foi estabelecido por outro ator.
No começo, ele diz, trabalhar diante da câmera parecia "menos instintivo" do que o teatro, mas isso é algo que ele veio a "amar muito". Em dezembro, Menzies começará a gravar a segunda temporada de "This Way Up", estrelada por Aisling Bea, uma comédia sombria do Channel Four na qual ele interpreta um pai inglês tão reservado que qualquer mínimo gesto físico que ele faça ganha ressonância emocional. "Amo a
série. Acho que Aisling criou algo verdadeiramente incomum, divertido mas também com muita gentileza, com muita tristeza e com muito coração", ele disse.
Um dos benefícios das séries de TV de orçamento mais alto, como "The Crown", é que o cachê mais generoso lhe dá liberdade para passar mais tempo fazendo teatro. (Um de seus papéis mais queridos foi o do médico na atualização radical de Robert Ickes para "Tio Vânia", de Chekov, em 2016, pela qual o Financial Times elogiou a destreza de Menzies em "retratar ostensivamente um cinismo distanciado mas ao tempo um cerne secreto de autorrespeito". Menzies define a peça como "um dos melhores trabalhos de que já participei no teatro".)
Mas em 2018, "The Crown" gerou controvérsias quando Claire Foy, que interpretou a rainha Elizabeth 2ª jovem na primeira e segunda temporadas descobriu que seu cachê era bem menor que o de Matt Smith, que interpretava seu marido na tela.
A situação se inverteu na nova temporada, Mas Menzies não vê problemas em que Colman ganhe mais do que ele. No começo do ano, os dois foram ao Globo de Ouro usando broches com a inscrição "50:50", para apoiar a igualdade de pagamento entre os sexos. Ele descreveu a disparidade salarial como "proporcional" porque Colman traz "muito para a série, e é significativamente mais visível. Que Olivia receba mais do que eu é a exceção e não a regra", ele acrescenta. "Ainda resta muito a avançar."
A remuneração dos atores é o "star system" definitivo, com disparidades ocultas. "Se queremos resolver isso e obter mais igualdade, será preciso transparência sempre", ele disse. "Eu favoreceria essa prática. Ela provavelmente exporia alguns dos piores excessos em termos de remuneração desigual. Eu não me incomodaria de revelar quanto ganho a mais."
Quanto ele recebeu por seu papel em "The Crown"? A transparência tem limites. "O que quero dizer é que solidariedade e clareza entre os atores é bom, porque significa que as empresas não podem tirar dinheiro
de um ator para pagar outro. Em meio ao segredo e silêncio, as companhias [de cinema e TV] puderam pagar menos às mulheres do que aos homens."
Tradução de Paulo Migliacci.