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'O Gambito da Rainha': série da Netflix ignora sexismo no xadrez, diz ex-campeã

Susan Polgar diz que os jogadores de xadrez do sexo masculino da série Netflix eram "quase bons demais para ser verdade" - Netflix

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Fernando Duarte

BBC News Brasil

Existem várias cenas comoventes em "O Gambito da Rainha", a série da Netflix que conta a história fictícia de Beth Harman, uma jovem prodígio do xadrez da década de 1960. Em uma delas, um jogador experiente pega a mão de Harman e a beija suavemente após ser humilhado no tabuleiro por ela.

Esse 'ato de gentileza' aconteceu com a húngara-americana Susan Polgar, 51, na vida real, quando atuava profissionalmente como jogadora de xadrez. "Lembro-me de uma vez que estava jogando com o seis vezes campeão americano Walter Browne", diz à BBC Polgar, uma das primeiras mulheres a ganhar o cobiçado título de Grande Mestre.

"Em vez de aceitar a derrota ou me parabenizar, ele lançou as peças sobre o tabuleiro", diz. "Elas saíram voando e atingiram a mim e a outras pessoas ao redor", acrescenta Polgar.

Como muitas personalidades do mundo do xadrez, Polgar elogiou publicamente "O Gambito da Rainha" e está entusiasmada com o que a produção da Netflix pode fazer pela popularidade do esporte (a série atingiu a lista das mais assistidas em 27 países desde o seu lançamento no final de outubro).

Nota aos leigos: "gambito" é uma jogada em que o jogador sacrifica um de seus peões na intenção de ter algum tipo de vantagem mais adiante. Já "Rainha" é a tradução para o português da palavra em inglês 'Queen' que, na verdade, se refere à "dama", a peça mais importante do tabuleiro que se movimenta sem limitação do número de casas ou na direção em que se desloca.

A série é baseada no livro de mesmo nome escrito pelo americano Walter Tevis e lançado em 1983. Mas Polgar tem algumas reservas sobre como a série aborda as questões de gênero no xadrez. "A parte do sexismo foi minimizada. Beth Harman certamente enfrenta o sexismo, mas o que ela sofre foi fichinha em comparação com o que eu e outras jogadoras passamos", diz.

Polgar se refere a momentos em que a personagem interpretada pela atriz Anya Taylor-Foy é desmerecida por competidores quando decide participar de torneios. Em uma das primeiras cenas, Harman é levada a duelar com outra jogadora, em vez de com um homem, por exemplo.

'MUITO BOM PARA SER VERDADE'

"Sim, ela ouviu coisas como 'garotas não jogam xadrez e no primeiro episódio da série ela já estava desanimada", diz a húngara-americana. "Mas não é nada parecido com o que muitas jogadoras tiveram que passar na vida real", conta.

Polgar diz que em "O Gambito da Rainha", os jogadores de xadrez do sexo masculino eram na verdade "quase bons demais para ser verdade". "Na minha carreira, quase não me lembro de um torneio em que coisas como assédio sexual, intimidação física e abuso verbal ou psicológico não aconteceram."

Susan Polgar faz parte de uma família de prodígios do xadrez. Suas duas irmãs mais novas, Judit e Sofia, também são jogadoras talentosas —a primeira é considerada a melhor jogadora de todos os tempos, tendo alcançado a 8ª posição no ranking mundial, incluindo jogadores masculinos e femininos.

No entanto, os feitos das irmãs Polgar parecem ainda mais impressionantes quando consideramos as desvantagens que tinham de enfrentar de saída simplesmente por serem mulheres.

DESEQUILÍBRIO DE GÊNERO

O xadrez, em teoria, é um jogo em que o gênero não deveria importar —pelo menos em comparação com os esportes físicos. Mas das 1.928 pessoas em todo o mundo que receberam o título de grande mestre, oficialmente criado em 1950, apenas 37 são mulheres.

E somente uma mulher, a chinesa Hou Yifan, está entre os atuais Top 100 do Ranking Mundial da Federação Internacional de Xadrez (FIDE) —ocupando o 88º lugar.

De acordo com a FIDE, apenas 16% dos jogadores que competem em eventos oficiais em todo o mundo são mulheres, mas o órgão diz que essa proporção vem aumentando ao longo dos anos graças aos esforços para ampliar a participação feminina.

As medidas incluíram o aumento do prêmio em dinheiro do Campeonato Mundial Feminino para cerca de US$ 600 mil (R$ 3,2 milhões).

DESÂNIMO

Trata-se apenas da metade do prêmio do evento principal, mas, ao contrário de outros esportes, as mulheres no xadrez podem jogar contra os homens. "Uma das principais coisas que fazemos é manter a categoria feminina. Isso é polêmico e muitas pessoas afirmam que essa categoria deveria ser abolida por completo", diz David Llada, chefe de comunicações da FIDE.

"Mas, em nossa experiência, pode funcionar como um incentivo para trazer mais jogadoras para o xadrez. Oferecer algum apoio, já que as mulheres enfrentam diferentes desafios para se tornar grande mestres."

A visão do corpo diretor da instituição é que o desequilíbrio de gênero não pode ser "corrigido da noite para o dia", mas a FIDE vê a promoção de eventos exclusivos para mulheres como uma forma de abordar as questões presentes e futuras.

"Os eventos femininos, com um fundo de premiação a ser distribuído exclusivamente entre as mulheres, vão ajudá-las a ganhar a vida jogando xadrez. E esperamos que a existência de mais jogadoras profissionais atraia, por sua vez, mais meninas para o jogo", acrescenta Llada.

JOGADORES 'FRACASSANDO'

As taxas de participação feminina variam muito de país para país. O que parece ser quase universal é como as mulheres têm probabilidade muito maior de abandonar o xadrez do que os homens.

A bicampeã americana Jennifer Shahade, que também é diretora do Programa Feminino da Federação de Xadrez dos Estados Unidos, diz que manter meninas e jovens jogando é um grande desafio, mesmo em países com um grande número geral de jogadoras como os EUA.

"A participação feminina nos EUA é altamente concentrada nas idades mais jovens. É em torno de 15%, mas entre as de sete anos podemos ter algo em torno de 28%", explica Shahade. "Mas quando chegamos aos adultos, na faixa etária de Beth Harman, esse número é um pouco menor", acrescenta ela.

Shahade, que escreveu dois livros sobre mulheres no xadrez, diz que a determinação da personagem principal —Beth Harman— não foi testada na série Netflix como teria sido na vida real. "Ela tem um ótimo relacionamento com os homens e eles a apoiam muito", diz a ex-campeã.

LEGADO DE SEXISMO

Susan Polgar reforça que as condições para as mulheres que desejam jogar xadrez de forma competitiva melhoraram desde seus dias como jogadora. Ela se aposentou nos tabuleiros profissionais anos 2000.

Mas a grande mestre diz acreditar que o ambiente do xadrez ainda é "bastante intimidador para as mulheres". Mais uma vez, ela usa a experiência pessoal: desde 2007, Polgar treinou times de xadrez em universidades dos Estados Unidos e se tornou a primeira mulher a liderar uma equipe masculina ao título nacional — para desespero de alguns colegas do sexo oposto.

"Alguns treinadores de universidades rivais se recusaram a apertar minha mão ou me parabenizar quando ganhamos", diz ela. "Então, se você quiser que as meninas e mulheres jovens permaneçam no xadrez, você precisa mostrar a elas que elas não estão sozinhas em um campo dominado pelos homens."

"As meninas já estão desanimadas o suficiente para jogar xadrez desde a idade escolar. Chega a um ponto em que elas se perguntam: 'Por que eu tenho que lidar com isso? Não quero ouvir a todo o momento que eu não sou boa o suficiente'", acrescenta Polgar.

É por isso que pessoas como ela e sua irmã Judith têm se entusiasmado sobre "O Gambito da Rainha" em suas contas nas redes sociais. A popularidade da série da Netflix é vista não apenas como uma oportunidade promocional para o xadrez em si, mas também como uma "isca" para novas jogadoras em potencial.

"Na verdade, parece estar fazendo muitos pais buscarem maneiras de colocar suas filhas ou sobrinhas no jogo", diz Jennifer Shahade, rindo. "Essa é uma das coisas mais positivas que podemos fazer para combater o desequilíbrio de gênero que temos no xadrez", conclui.