Após anos de simpatia sem limites, bofetada pode prejudicar família Smith
Antes queridinho de Hollywood, Will Smith já vinha mudando seu perfil
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Desde que começou sua carreira, como um rapper brincalhão que interpretava canções permitidas para menores, e durante toda a sua ascensão cuidadosamente administrada ao estrelato dos filmes de ação, Will Smith passou décadas irradiando uma simpatia incansável. Mas essa imagem amistosa era uma fachada, até certo ponto, ele escreveu em suas memórias, nas quais revelou que um terapeuta tinha apelidado o seu lado bom sujeito de "Tio Fofinho".
Smith disse ter desenvolvido essa forma de comportamento aprazível como forma de escapar aos conflitos de uma infância tumultuada. "Como adulto, o personagem se tornou meu escudo e minha armadura", ele escreveu. "O Tio Fofinho pagava as contas".
Smith escreveu que também tinha um segundo lado, menos conhecido do público: o "General", um sujeito ranzinza que emergia quando a jovialidade não bastava para resolver o problema. "Quando o General aparece, as pessoas ficam chocadas e confusas", ele escreveu em "Will" seu livro de memórias publicado em 2021. "Era doçura, doçura, doçura, e depois amargor, amargor, amargor".
Os dois lados de Smith estiveram visíveis em um dos palcos mais visíveis do planeta, na semana passada, quando ele subitamente esbofeteou o comediante Chris Rock durante a transmissão da cerimônia de entrega do Oscar, se queixando de que Rock tinha insultado Jada Pinkett Smith, com quem Smith está casado há 25 anos, ao fazer um gracejo. Logo em seguida, Smith conquistou o Oscar como melhor ator e chorou em seu polarizador discurso de agradecimento. Depois, ele se mandou para a festa da Vanity Fair, onde foi visto dançando como se nada tivesse acontecido, ao som de "Get Jiggy With It", hit que ele gravou no século passado.
Agora, Smith se desligou da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que tinha acabado de premiá-lo com um Oscar mas criticou suas ações e iniciou procedimentos disciplinares contra ele. E está diante da possibilidade de que uma noite que poderia ter sido o momento supremo de sua carreira profissional termine por danificar uma marca familiar construída sobre sua amabilidade, que sempre pareceu autêntica.
Há diversos anos, um dos ramos da família Smith vem oferecendo revelações e intimidade emocional em estilo de reality show, em número crescente de plataformas. Além da carreira de Smith e de suas introspectivas memórias, que se tornaram best seller, há o popular "Red Table Talk", um podcast do Facebook Watch, no qual Pinkett Smith, Willow Smith, a filha do casal, e Adrienne Banfield Norris, a mãe de Pinkett Smith, debatem assuntos que vão da identidade racial a exercícios físicos, passando pelo casamento nada convencional dos Smith.
Os projetos que Smith tem alinhados incluem "Emancipation", um drama prestigioso com orçamento de US$ 100 milhões (R$ 500 mi) para a Apple; um thriller de ação na Netflix; uma refilmagem de "Antes Só do que Mal Acompanhado", que ele estrelará em companhia de Kevin Hart, para a Paramount; e a segunda parte de uma série sobre viagens para a National Geographic, no serviço de streaming Disney+. Tudo isso será realizado sob a bandeira do Westbrook Studios, a companhia de cinema e televisão que a família Smith criou em 2019. A empresa foi avaliada em US$ 600 milhões (R$ 3 bi), algumas semanas atrás, quando um grupo de investimento adquiriu 10% de suas ações. Será que a bofetada tirará tudo isso dos trilhos?
Agora que Smith deixou de ser bem-vindo na cerimônia do Oscar e que sua reputação pública foi maculada, os estúdios podem hesitar antes de contratá-lo para papéis principais em suas grandes produções, pelo menos por enquanto. As empresas envolvidas nos projetos que Smith tem em preparo se recusaram a informar se pretendem alterar seus planos, diante dos acontecimentos recentes. Mas três agentes de talentos, que falaram sob a condição de que seus nomes não fossem revelados porque estavam discutindo negociações privadas, disseram que existiam indicações de que pelo menos alguns dos projetos imediatos de Smith estavam em risco.
Diversos especialistas em relações públicas cujo foco é a gestão de crises advertiram que o incidente poderia erodir a boa vontade de que os Smith desfrutam junto ao público, e outros sugeriram que as consequências provavelmente seriam minimizadas. "A marca sofreu danos em todo o mundo", disse o especialista em relações públicas Mike Paul.
O veterano produtor de TV Jonathan Murray, que lidou com dramas nas telas e fora delas e com questões de marca familiar em programas como "Keeping Up With the Kardashians", disse que as consequências para os Smith dependem dos próximos passos da família, e especialmente de Will Smith.
"Creio que a maioria das pessoas daria a ele o benefício da dúvida", disse Murray, um dos fundadores da produtora Bunim Murray, pioneira dos reality shows. "Mas isso realmente dependerá se acreditamos que ele está lidando autenticamente com isso".
Diversos amigos e colegas de Smith descreveram a altercação no Oscar como uma aberração inexplicável, para um homem que passou quase toda a sua carreira respeitando os padrões de sua profissão de maneira quase fanática.
"O que aconteceu não foi compatível com qualquer comportamento que eu tenha visto em meu trabalho com Will Smith", disse Elizabeth Cantillon, produtora de "Um Homem Entre Gigantes", filme de 2015 no qual Smith interpreta um médico que luta contra o comando do futebol americano profissional nos Estados Unidos. "Ele foi sempre impecável. Acho que o que aconteceu é parte do colapso coletivo pelo qual estamos passando".
O incidente surgiu em um momento no qual Smith parecia viver um período de transição, buscando papéis mais elevados e que o interessassem mais no plano pessoal; expandindo seu império de mídia para além do cinema; discutindo abertamente os abusos de seu pai contra sua mãe, que ele testemunhou; e trabalhando no que ele definiu como autoconhecimento, por meio de terapia, meditação e até alucinógenos.
"Qualquer plano de tentar me tornar o maior astro de cinema do planeta –isso certamente ficou para trás", disse Smith em uma entrevista à New York Time Magazine em dezembro. "Quero escolher papéis nos quais possa me ver, ver minha família, contemplar ideias importantes para mim. Tudo em minha vida agora está centrado em mais crescimento espiritual e elevação".
Smith, natural de Filadélfia, começou a se apresentar quando adolescente, na década de 1980, como parte da dupla de rap DJ Jazzy Jeff and the Fresh Prince, e não demorou a ganhar um Grammy –o primeiro por melhor interpretação de rap—, pela canção "Parents Just Don’t Understand". Um encontro acidental com o produtor Quincy Jones o conduziu ao papel principal na comédia "The Fresh Prince of Bel-Air", da rede de TV NBC, que ficou em cartaz entre 1990 e 1996, e tinha por tema um hip-hop que muita gente que foi criança naquela época ainda sabe de cor. (A empresa de Smith recentemente desenvolveu "Bel-Air", uma versão repaginada e dramática da série que acaba de concluir sua segunda temporada no serviço de streaming Peacock, e se tornou a série original mais assistida da empresa.)
Smith decidiu que se tornaria o maior astro de cinema do planeta –e conseguiu atingir essa meta, de acordo com muitos indicadores. Com o sócio encarregado de negócios, James Lassiter, Smith calculou com zelo digno de um contador os temas comuns que os filmes de maior sucesso da época envolviam: efeitos especiais, alienígenas, uma história de amor. Ele se tornou o rosto dos "blockbusters" de verão, com filmes como "Homens de Preto" e "Independence Day". Em seu livro, no qual ele trabalhou com o escritor Mark Manson, ele oferece um mapa informativo, ainda que um tanto gabola, de seu sucesso: entre 2002 e 2008, ele teve oito filmes consecutivos com bilheterias superiores a US$ 100 milhões (R$ 500 mi) nos Estados Unidos.
Smith sempre atendeu os fãs carinhosamente. Mas o peso do sucesso era enorme. "Sou um homem negro em Hollywood –a fim de manter minha posição, não posso tropeçar, nem mesmo uma vez", escreveu Smith em seu livro. "Tinha de ser perfeito o tempo todo".
Parte da imagem que ele buscava projetar tinha a ver com sua vida familiar aparentemente invejável: seus filhos, todos artistas –Willow, 21; Jaden, 23; e Trey, 29, filho de um casamento anterior do ator— e sua união com Pinkett Smith, 50, que é atriz e cantora. Esse retrato de estabilidade sofreu abalos nos últimos anos, especialmente quando Pinkett Smith reconheceu, em um episódio de "Red Table Talk" em 2020, que o casal havia passado por uma separação durante a qual ela teve o que descreveu como "um envolvimento" com o cantor de R&B August Alsina.
Usando "Red Table Talk" como uma espécie de sessão pública de terapia, os Smith expuseram os detalhes de algumas de suas mais ferozes disputas, às vezes na presença de Willow Smith e de Banfield Norris, a sogra de Smith, conhecida pelos espectadores do show como Gammy. Em um episódio, em 2018, os Smith buscaram negar alguns boatos, dizendo que não são adeptos da troca de casais e nem devotos da cientologia, depois de informações ao longo dos anos de que tinham doado dinheiro para causas ligadas à cientologia.
"Nós somos devotados um ao outro no sentido espiritual –espiritual, emocional. Para o que quer que ela precise, pode contar comigo pelo resto da vida", disse Will Smith durante o episódio do programa. "Não há o que possa nos afastar".
As revelações sobre o casamento deles foram recebidas com zombarias públicas, o que incluiu gracejos em cerimônias de premiação. Na metade de março, durante a entrega do prêmio Bafta, o equivalente britânico do Oscar, a apresentadora, a humorista Rebel Wilson, brincou a respeito quando falou da vitória de Smith por "King Richard: Criando Campeãs". "Pessoalmente", ela disse, "eu achei que o melhor desempenho dele no ano passado foi aceitar todos os namorados da mulher". Smith não compareceu à cerimônia.
Na cerimônia do Oscar deste ano, antes mesmo de Rock subir ao palco, Regina Hall aludiu ao relacionamento dos Smith em um sketch de humor no qual ela se convidou sugestivamente para inspecionar alguns dos solteiros mais cobiçados de Hollywood, brincando que os resultados dos testes de Covid de todos eles tinham sido perdidos. "Will Smith", ela disse. "Você é casado, mas sabe o quê? Você está na lista, e parece que Jada aprova. Vem cá, então". Ele riu e ficou em seu ugar.
O que fez com que Smith deixasse seu lugar e subisse ao palco foi uma piada improvisada de Rock sobre a cabeça raspada de Pinkett Smith. Smith disse mais tarde que isso o tinha irritado porque sua mulher sofre de alopecia, que causa perda de cabelo. "Uma piada sobre um problema médico de Jada foi demais para mim, e reagi de modo emocional", ele explicou em um pedido de desculpas a Rock e a outros que postou no Instagram na noite da segunda-feira posterior à premiação. De sua parte, Rock disse em um show de comédia na quarta-feira seguinte que ainda estava tentando entender o ocorrido. (Um representante de Smith se recusou a comentar. Representantes de Rock e de Pinkett Smith não responderam a pedidos de comentário.)
Para muitos espectadores e fãs, especialmente fãs negros, o incidente envolvendo três dos artistas negros mais conhecidos de Hollywood foi complicado e não é fácil chegar a uma conclusão sobre o ocorrido. "É um momento realmente complicado, por conta de todas as maneiras pelas quais isso ecoa em termos de gênero, raça, poder e marca", disse Miriam Petty, historiadora do cinema e professora da Universidade Northwestern, que pesquisa sobre astros negros.
Alguns comentaristas criticaram Rock por uma brincadeira que viram como golpe baixo. Outros, como a atriz Tiffany Hadish, que trabalhou com Pinkett Smith na comédia "Viagem das Garotas", aplaudiram Smith por aparentemente ter defendido a honra de sua mulher, o que Petty caracterizou como compreensível em um mundo no qual as mulheres negras e não brancas não recebem as mesmas proteções que suas contrapartes brancas. Mas será que a postura adotada por Smith deve ser considerada como antifeminista? Será que glorificou a violência? "De novo: complicado, complicado, complicado", disse Petty.
Desde que completou 50 anos, Smith relaxou sua imagem pública, em alguma medida. Uma recente série no YouTube, "Best Shape of My Life", que ostensivamente girava em torno de seu corpo de meia-idade, na verdade era uma forma de afrouxar a rigidez das normas de comportamento que o ator sempre seguiu. Ele viajou sem seguranças pela primeira vez em anos; enfim aprendeu a nadar; e tentou se acomodar ao peso que o relacionamento com seu pai, morto em 2016, teve em sua vida.
Na declaração em que anunciou seu desligamento da academia, Smith disse que "mudar requer tempo, e assumi o compromisso de fazer o trabalho necessário para garantir que a violência não volte a sobrepujar a razão".
Agora, à medida que Smith tenta se recuperar do episódio, ele parece destinado a fazê-lo com sua família ao seu redor. Depois do Oscar, Pinkett Smith postou uma mensagem no Instagram: "É hora de buscar a cura", ela afirmou, usando um termo muito conhecido dos 11 milhões de seguidores de "Red Table Talk" no Instagram. "E estou aqui para isso".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci