Will Smith e sua família viram líderes de Hollywood no quesito revelações
Com livro, série e música, os Smith não têm medo de revelar traumas e polêmicas
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Na primeira página de "Will", o recente livro de memórias de Will Smith, o superastro internacional relata uma história brutal: ele viu seu pai acertar um soco tão forte na cabeça de sua mãe que ela cuspiu sangue.
Os capítulos iniciais do livro seguem mais ou menos esse caminho –o jovem Will, naturalmente carismático e excêntrico, assume o papel de artista da família, buscando salvar sua mãe, a si mesmo, e todo mundo mais.
"Eu seria o menino de ouro", ele escreve. "O salvador de minha mãe. O usurpador da posição de meu pai. Seria o melhor desempenho de minha vida. E, pelos 40 anos seguintes, eu jamais abandonei aquele personagem. Nenhuma vez".
Que ele tenha se tornado um vencedor permanente em seus filmes, a partir da metade da década de 1990 —derrotou os alienígenas em "Homens de Preto", derrotou os robôs em ‘"Eu, Robô", derrotou os mutantes em "Eu Sou a Lenda", derrotou George Foreman em "Ali"— pode ter sido uma resposta ao trauma, mas também fez de Smith um dos atores de maior sucesso financeiro do cinema.
Fora das câmeras, ele se comportava mais ou menos como diante delas, revelando pouco: uma pessoa que ninguém parecia capaz de conhecer, mas ainda assim amada por milhões de fãs.
Nos dois últimos anos, os músculos de Smith parecem ter relaxado um pouco. Ele se tornou uma presença mais espontânea e menos ensaiada no Instagram e TikTok. Além da autobiografia em que ele revelou uma vulnerabilidade incomum, Smith também estrelou recentemente uma série em seis episódios para o YouTube Originals, "Best Shape of My Life", que ostensivamente mostrava como perder peso, mas que, observada com mais profundidade, revela as fissuras cada vez mais fundas em sua persona pública.
Por décadas, ele se esforçou para manter uma fachada sólida; agora, decidiu derretê-la. Essa virada para a transparência faz dele o patriarca de uma família que recentemente transformou as revelações íntimas em sua maior marca. Os Smith —Will, 53; sua mulher, Jada, 50; e os filhos do casal, Jaden, 23, e Willow, 21— se tornaram a família líder de Hollywood no quesito revelações.
Se considerarmos o lado relaxado que Will vem demonstrando recentemente, o talk show altamente franco que Jada e Willow apresentam, "Red Table Talk", e a música de Willow e Jaden, os Smith parecem ter reformulado a imagem da velha unidade familiar de elite hollywoodiana e a enquadrado à nova era dos reality shows de celebridades.
O percurso deles foi o oposto, por exemplo, do seguido pela família Kardashian, que representa o ideal platônico de um clã de reality show que ascendeu ao estrelato tradicional (e desmontou de vez as fronteiras entre os tipos de fama novo e antigo, ao longo do caminho).
Já os Smith decidiram deixar de lado o modelo mais convencional de celebridade e se arriscar no formato mais espalhafatoso e arriscado que prevalece recentemente, e conseguiram fazê-lo com alguma graça –o que é chocante, especialmente se considerarmos a intensidade de algumas das revelações que eles fizeram.
A virada dos Smith se enquadra com perfeição à era das confissões online e à das marcas pessoais cuja base é o trauma, especialmente para uma família cujos pais estão se afastando dos olhos das câmeras e cujos filhos se tornaram famosos antes que pudessem escolher outro caminho.
Também representa uma profunda validação do poder da comunicação emocional direta, e do fim do estigma que isso portava para os famosos, e transforma revelações que teriam se tornado tema de jornais sensacionalistas e biografias não autorizadas, no passado, em um caminho para o empoderamento pessoal.
Will talvez seja o integrante da família mais famoso aos olhos do público, mas foi Jada que ajudou a definir o percurso da reinvenção familiar ao lançar "Red Table Talk". O programa, disponível no Facebook Watch, foi criado na metade de 2018 e rapidamente ganhou fama pelas conversas inesperadamente vulneráveis que mostra, envolvendo tanto celebridades convidadas quanto as apresentadoras –Jada, Willow, e a mãe de Jada, Adrienne.
Cada uma delas defende bem seu território —um dos exemplos é o episódio sobre o poliamor, em que Willow parece deixar suas colegas apresentadoras sem resposta, mas a boa vontade familiar sempre impede que o programa degringole para momentos verdadeiramente tensos.
Foi só nas últimas duas décadas que os reality shows se tornaram um espaço seguro alternativo para os famosos. Antes, confissões de bastidores eram exclusivamente assunto para jornais sensacionalistas, e constituíam um lado desagradável da fama, a ser evitado a qualquer custo.
Mas a partir do começo da década de 2000, a era de "The Osbournes" na MTV, os reality shows começaram a oferecer uma válvula de escape e permitir que os famosos aproveitem seu renome antes que suas carreiras percam a relevância.
Isso era novidade, na época, e terminou por fomentar todo um subsetor de segundas chances de fama, tipicamente para celebridades de terceira e quarta linha, tanto em documentários familiares melodramáticos quanto em programas como "Celebrity Rehab With Dr. Drew" e "Marriage Boot Camp: Reality Stars".
A mídia social ampliou as possibilidades disponíveis, concedendo oxigênio novo para pessoas conhecidas que estavam a caminho de se tornarem desconhecidas. Para a família Smith. "Red Table Talk" foi uma prova de que a ideia funcionava: era aceitável e até desejável que as celebridades mais proeminentes transformassem as confissões pessoais em parte de sua marca.
Mais de um episódio trata dos desafios do casamento de Will e Jada, e oferece pinceladas de revelação sobre um casal alvo de numerosas fofocas. Eles insistem em que nunca se separarão, porque, depois de superarem desafios que eles nunca revelam, "não há qualquer coisa que não sejamos capazes de superar".
(No final da conversa, Will busca negar alguns boatos frequentes: "Nunca fomos parte da cientologia, nunca fomos ‘swingers’, embora Jada se apresse a apontar que o segundo termo é uma descrição de um "estilo de vida específico").
Se você assistir a episódios suficientes de "Red Table Talk" depois de ler o livro de Will e absorver sua série no YouTube, vai encontrar a mesma história narrada de diversas maneiras diferentes –ele vem preparando o caminho para se libertar de seus fardos já há algum tempo.
Diferentemente de Jada, que aborda o programa e a revelação de suas verdades de maneira mais casual, Will abraçou plenamente a mudança de postura e trata a oportunidade como trataria um filme de grande orçamento: ensaios, precisão, execução perfeita.
"Best Shape of My Life" começa como um programa sobre perda de peso –Will está exibindo uma amena barriguinha paterna. Para lidar com isso, ele viaja a Dubai, como qualquer pessoa faria, para trabalhar com seu personal trainer. Ele quis que o processo fosse filmado, diz, "porque as câmeras são como que o meu padrinho –elas me forçam a prestar contas".
Smith encara desafios físicos intensos –caminhar até o topo do Burj Khalifa, o edifício mais alto do mundo, ou passar pela pista de obstáculos da academia de polícia de Dubai– e também aproveita o tempo para redigir suas memórias.
Não demora para que a necessidade de prestar contas comece a incomodá-lo. Sua preocupação quanto ao seu objetivo de perda de peso começa a parecer uma falsa tensão. O mesmo vale para o estresse quanto ao prazo de entrega de seu livro (sublinhado pelo que parecem ser mensagens de voz ensaiadas de um assistente).
O que surge a seguir é um cabo de guerra entre sua compulsão de atuar e sua necessidade de se esconder. O quarto episódio tem o título "Desisto", mas o programa continua por mais dois episódios –afinal, estamos falando de uma produção de Will Smith. Mas há um desgaste evidente. No quinto episódio, ele resmunga, "que se [palavrão] o orçamento, que se [palavrão] o prazo –eles vão aceitar o que nós lhes dermos".
Segmentos inteiros do programa são dedicados a imagens de Will lendo trechos de suas memórias para parente e amigos. Esses momentos expõem vulnerabilidade sem jamais dissociá-la da atuação. Will chora sobre os desafios que encarou em sua casa na infância, e os espectadores, entre os quais seu terapeuta, assistem com acenos apreciativos. Depois de deixar para trás há alguns anos o pico do seu sucesso de bilheteria, ele parece ter construído um sistema de recompensas mais acessível.
(E para que não nos esqueçamos que essa mudança de posição da família é de muitas maneiras uma empreitada de negócios, as oportunidades de promoção cruzada são incontáveis. Em "Best Shape of My Life", Will muitas vezes usa roupas da grife Bel-Air Athletics. Quando a família se reúne em Miami para ouvi-lo ler capítulos do livro a respeito deles, a mesa está repleta das garrafas azuis e quadradas que caracterizam a Just Water, uma empresa de Jaden.)
No passado um superastro conhecido por um maximalismo liso, Will já havia testado esse novo tipo de conteúdo de bastidores em momentos anteriores, como "Will Smith’s Bucket List", uma série no Facebook Watch, e "Will Smith: Off the Deep End", um documentário sobre imersão na natureza. Mas os últimos 12 meses representaram um esforço de redefinição de marca em múltiplas plataformas no qual Smith usa todas as ferramentas da celebridade a fim de remover suas camadas uma a uma
Em sua autobiografia, ele escreve de modo comovente sobre os sentimentos contraditórios que tem com relação ao pai, que instilou em Will a disciplina com a qual ele construiria sua carreira de sucesso astronômico, mas ao mesmo tempo era abusivo. Em um trecho do livro, ele dá a entender que pensou em empurrar seu pai, já idoso, escada abaixo, como vingança.
Mas a verdadeira revelação sobre o relacionamento de Will com a autoridade paterna vem em "King Richard: Criando Campeãs", cinebiografia sobre Richard Williams, o pai das tenistas Venus e Serena Williams.
Williams sempre foi criticado por seu modo obsessivo de criar as filhas, mas Will o interpreta com empatia, como um herói persistente, enfatizando sua teimosia mas sem transformá-la em objeto de zombaria. (Smith foi indicado a um Oscar de melhor ator pelo papel.) Nenhum meio deve ser considerado inaceitável, quando os fins são tão desejáveis.
É provável que o papel tenha um duplo significado para Will –por um lado, uma celebração da disciplina transformadora que aprendeu com seu pai (em um contexto não abusivo). Por outro, um argumento em favor de seu estilo de criação de filhos.
Tanto no livro de memórias quanto em "Red Table Talk" ele fala abertamente de como sua condução pesada da criação de Jaden e Willow causou problemas, em numerosas ocasiões. Quando o primeiro single de Willow, "Whip My Hair", se tornou sucesso, ela se rebelou contra a pressão por excursionar para promover o disco e raspou o cabelo. O filme de ação que ele fez com Jaden, "Depois da Terra", foi um fracasso colossal. (Will tem outro filho, Trey, de seu primeiro casamento, que às vezes trabalha como DJ e aparece ocasionalmente em "Red Table Talk".)
Mas a sensatez dos jovens Smith é realmente notável. Eles são pensadores desordenados, como costuma acontecer aos filhos dos privilegiados, mas também curiosos e dotados de empatia e, tudo considerado, parecem ser pessoas bastante calorosas. (É impossível ouvir a história de Jaden sobre como aprendeu a lidar com a necessidade de pagar por seu jantar sem sentir simpatia por ele.)
Dado o ciclo da jornada de seus pais rumo à celebridade intocável, e de volta, e se considerarmos que eles nasceram em uma geração muito mais transparente, parece fácil para eles se adaptar à visibilidade ampliada que sua família vem adquirindo.
Jaden prefere se manter distante dos holofotes, embora tenha lançado um álbum no ano passado, "CTV3: Day Tripper’s Edition", repleto de canções pop com um lado sonhador. Quando ele aparece em "Red Table Talk" ou em "Best Shape of My Life", suas intervenções soam quase impossivelmente sábias.
Willow, trabalhando em relativo silêncio, já lançou cinco discos, e seus trabalhos mais recentes têm um estilo pop punk meio bruto, que parece estar na moda. "Lately I Feel Everything", do ano passado, é seu melhor álbum até agora, e inclui "Transparentsoul", um hino dolorido sobre vulnerabilidade, e canções francas como "Xtra," na qual ela parece estar procurando espaço para respirar:
"Não gosto de ceder tão fácil quando pressionada/ Preciso de tempo sozinha para respirar, preciso de árvores e de ar fresco". E o disco que ela lançou em 2020 como parte da dupla Anxiety (com Tyler Cole) tem como destaque "Meet Me at Our Spot", que se tornou grande hit no ano passado no TikTok, como trilha sonora para que os criadores de vídeos se percam na dança.
Em "Red Table Talk", Willow é um baluarte de sinceridade e decência. Sentir, sentir profundamente, é o cerne da forma pela qual ela se apresenta ao público; a conversa dela com Paris Jackson foi menos entrevista que um abraço amigo. (Em dado momento, Willow deu a entender que se cortava, quando mais jovem.) Em sua música e em seu programa de entrevistas, ela percebe o quanto é fútil ocultar seus sentimentos, e por isso nem tenta.
Para Will e Jada, porém, o ato da confissão representa, naturalmente, uma reafirmação de poder. Ser vulnerável a esse ponto, efetivamente e sem medo de represália ou colapso público, talvez seja o maior teste de celebridade. A única questão que resta a decidir é que segredos ainda existem por trás de toda essa transparência.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.