Britney Spears lutou silenciosamente durante anos pelo fim de sua tutela
NYT teve acesso a documentos judiciais sigilosos do caso
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Nos anos transcorridos desde que uma juíza concedeu ao pai de Britney Spears, 39, controle sobre a vida e as finanças da filha, muitos fãs inconformados questionaram de que forma o tribunal podia considerá-la como incapaz de se proteger e de cuidar da própria vida ainda que ela fosse uma estrela pop em atividade.
O pai de Spears e pessoas envolvidas na tutela sustentavam que o sistema funcionava sem empecilhos, que servia para resgatá-la de um período difícil, que a beneficiou, e que ela tinha o direito de solicitar o fim da tutela assim que desejasse. Enquanto isso, Spears mesma manteve completo silêncio, em público.
Mas agora, registros judiciais confidenciais obtidos pelo The New York Times revelam que Spears expressou séria oposição à tutela, antes e mais frequentemente do que se sabia, e declarou que o sistema restringia todas as suas ações, das pessoas com quem ela saía a mudar a cor dos armários de sua cozinha.
“Ela articulou que considera que a tutela se tornou um instrumento opressivo usado contra ela para controlá-la”, afirmou um investigador designado para o caso pelo tribunal em um relatório datado de 2016. O sistema tinha “controle demais”, disse Spears, de acordo com um relato do investigador sobre a conversa. “Controle demais, demais!”
Spears informou ao investigador que queria que a tutela fosse terminada o mais cedo possível. “Ela está ‘cansada de ser explorada’ e disse que é ela que trabalha e ganha dinheiro, mas todas as pessoas que a cercam vivem às suas custas”, escreveu o investigador.
Em 2019, Spears disse ao tribunal que sentia ter sido forçada pela tutela a se internar em uma instituição de saúde mental, e a se apresentar contra sua vontade.
No comando da vida e das finanças da cantora pela maior parte desse período estava o pai dela, James Spears, 68, conhecido como Jamie, de quem ela passou algum tempo afastada mas que foi apontado como seu tutor em 2008, pouco depois de Spears ter sido internada involuntariamente por duas vezes em instituições psiquiátricas, na esteira de uma série de incidentes públicos e devido a preocupações sobre sua saúde mental e uso de substâncias proibidas.
Os documentos judiciais obtidos recentemente mostram que Spears questionou a competência do pai para a função. Em 2014, em uma audiência fechada ao público, Samuel Ingham 3º, advogado apontado pelo tribunal para defender Spears, disse que sua cliente queria discutir a destituição de seu pai como tutor, mencionando o consumo de álcool dele e outras objeções que ela apresentou em forma de uma “lista” de queixas, segundo o advogado.
No ano passado, Ingham deu destaque a essas questões, dizendo ao juiz que Spears “tinha medo de seu pai”, que continua responsável por gerir a fortuna de quase US$ 60 milhões (cerca de R$ 302 milhões) da cantora.
Nesta quarta-feira (23), Spears deve falar diretamente ao tribunal em Los Angeles --uma ocasião rara, que ela solicitou em regime de urgência. Não está claro se suas declarações serão feitas em público, mas o relacionamento entre ela e o pai deve ser o assunto central.
Representantes de Jamie Spears se recusaram a comentar, justificando a recusa com a proximidade da audiência judicial. Mas haviam declarado anteriormente que a tutela era necessária para proteger Spears de exploração e danos, e que Jamie Spears era um pai devotado, que agia por amor à filha.
“A qualquer momento em que Britney deseje encerrar a tutela, basta pedir que seu advogado encaminhe uma petição ao tribunal e a tutela será encerrada. Ela tem esse direito há 13 anos, mas nunca o exerceu”, disse Vivian Lee Thoreen, advogada de Jamie Spears à revista People este ano. “Britney sabe que seu papai a ama e que estará lá para ajudá-la sempre que ela precisar, como sempre esteve –com ou sem tutela”.
O relacionamento deles foi sempre difícil e disfuncional, de acordo com documentos judiciais e entrevistas com muitas pessoas que conhecem a família. Mas a dinâmica se complicou ainda mais depois que Jamie Spears –um alcoólatra em recuperação que já enfrentou acusações por abuso físico e verbal– assumiu o comando do que ele via como um esforço para livrar a filha adulta de seus demônios.
Spears disse que seu pai era “obcecado” por ela, no sentido de que desejava controlar tudo que a cerca, de acordo com o relatório do investigador. Ela não pode fazer amizades sem a aprovação dele.
Ainda que tenha faturado milhões de dólares com shows regulares em Las Vegas, Spears disse que está limitada a US$ 2.000 (R$ 10 mil) por semana para suas despesas, de acordo com os registros judiciais.
Quaisquer erros resultavam em consequências “muito severas”, acrescentou Spears, de acordo com o relatório. A tutela vem acompanhada “de muito medo”, ela disse.
Depois de conversar com Spears, com os tutores e com seus médicos, o investigador concluiu que em 2016 a tutela continua a servir melhor aos interesses de Spears, por conta da complexidade de suas finanças, suscetibilidade a influências indevidas e problemas “intermitentes” com as drogas, ainda que o relatório tenha pedido a criação de um “percurso para a independência e a futura suspensão da tutela”.
Os registros oferecem um retrato parcial dos sentimentos e da situação de Spears ao longo dos 13 anos da saga. Mas apresentam detalhes reveladores sobre sua insatisfação com o esquema, especialmente sua preocupação por sua opinião sobre o pai, e o comportamento dele, não estarem sendo devidamente considerados.
Especialistas dizem que tutelas devem priorizar os desejos do tutelado, e ajudar a pessoa a reconquistar sua independência. Arranjos desse tipo supostamente devem servir como último recurso quando uma pessoa é incapaz de tomar conta de suas necessidades primárias, por exemplo pessoas com deficiências significativas ou idosos sofrendo de demência senil, mas Spears vem sendo capaz de se apresentar em público e de ganhar dinheiro há mais de uma década.
JAMIE E BRITNEY
O que os documentos judiciais deixam claro é que a batalha pela tutela tem raízes na complicada história da família.
Debbie Sanders Cross, primeira mulher de Jamie e amiga dele até hoje, disse que “a criação difícil” que ele teve influenciou suas perspectivas. “Eu acredito de verdade que ele está tentando proteger Britney”, ela disse.
Jamie Spears viveu por boa parte de sua vida em Kentwood, uma cidadezinha da Louisiana onde ele era quarterback e astro do time de futebol americano local. O pai dele, que trabalhava como fabricante de caldeiras, era severo e exigente. “O pai dele foi muito duro com ele, mas Jamie o amava e respeitava”, recordou Elton Shaw, antigo treinador de futebol americano de Jamie.
A juventude de Jamie Spears foi marcada por tragédias. A mãe dele se suicidou, sobre o túmulo de seu filho mais novo, quando Jamie tinha 13 anos, de acordo com o jornal local. Jamie Spears sobreviveu a um acidente de automóvel que matou um colega de time quatro anos mais tarde. Aos 22 anos, foi preso por acusações dirigir embriagado e sob efeito de drogas, de acordo com uma reportagem.
Quando Lynne Spears, sua segunda mulher e mãe de Britney, pediu divórcio, em 1980, ela solicitou uma liminar que o proibisse de se aproximar dela, temporariamente, afirmando ter medo de que “ele se zangasse ao receber os papéis” e decidisse agredi-la ou intimidá-la, “especialmente se ele tiver consumido bebidas alcoólicas, como costumava fazer no passado”.
O casal se reconciliou, mas a instabilidade de Jamie Spears foi um problema na infância de sua filha, a família diz. Em suas memórias, publicado em 2008, Lynne Spears recorda anos de “abusos verbais, abandono” e “comportamento errático”.
A família enfrentava dificuldades financeiras e, em 1998, pouco antes do lançamento do primeiro álbum de Britney, um imenso sucesso, os Spears pediram falência. O casal se divorciou em 2002. Spears disse mais tarde que isso foi “a melhor coisa que aconteceu para a família”.
Jamie Spears só esteve presente ocasionalmente durante a ascensão de sua filha ao estrelato pop. Em 2004, de acordo com um documento judicial, ele fez um tratamento para alcoolismo por sugestão da filha.
Mas em 2007, Spears estava em dificuldades. Passou por humilhações na imprensa, sofria assédio de paparazzi, e teve de enfrentar rumores sobre sua saúde mental e abuso de substâncias, isso tudo em meio a uma batalha judicial pela guarda de seus dois filhos pequenos. A situação a levou ao colapso.
Jamie Spears ressurgiu, para o que ele e a ex-mulher, Lynne Spears, viam como uma missão urgente de resgate.
Acompanhado por sua gerente administrativa, Louise Taylor, ele jejuou e orou antes de pedir ao tribunal que lhe concedesse tutela temporária sobre Britney, escreveu Lynne Spears em suas memórias. Taylor mais tarde se tornaria gerente comercial dos negócios de Britney Spears, geridos pelo pai, e uma das arquitetas de seu retorno.
A cantora enfatizou que não queria que seu pai tivesse poder sobre ela, disse um advogado que ela consultou na época. Mas a juíza encarregada do caso, Reva Goetz, considerou que Spears não tinha competência para selecionar um advogado, e apontou Ingham, o advogado que a defende até hoje, para representá-la.
Documentos judiciais mostram que, em fevereiro de 2008, Goetz considerou Jamie Spears como “pessoa adequada e qualificada” e lhe concedeu controle amplo sobre a vida diária da filha e, em companhia de um segundo tutor, sobre suas finanças.
“Tudo que ele faz é no melhor interesse de suas filhas e de sua família”, disse Mitch Covington, amigo de Jamie Spears.
A cantora não demorou a voltar ao trabalho. Um ano depois de ter sido considerada incapaz de cuidar de si mesma, ela estava fazendo participações especiais em programas de TV, lançou um álbum que chegou ao primeiro lugar nas paradas, e estava se preparando para uma turnê internacional com quase 100 shows ao redor do planeta.
Além de seu salário como tutor --hoje de cerca de US$ 16 mil (R$ 80,6 mil) por mês, e mais US$ 2 mil (R$ 10 mil) para o aluguel de um escritório--, o tribunal aprovou que Jamie Spears recebesse comissões sobre diversos contratos assinados pela filha.
Em 2011, ele recebeu uma comissão de 2,95% por seu trabalho na bem-sucedida turnê Femme Fatale, e em 2014 ele recebeu 1,5% da receita bruta de bilheteria e venda de mercadorias dos shows de Spears em Las Vegas, “Piece of Me”, que resultaram em um faturamento total de US$ 138 milhões (R$ 695 mi), em quase 250 apresentações.
O papel duplo de cuidar dos interesses pessoais de Spears e colher mais e mais benefícios a cada vez que ela se apresentava “é eivado de conflitos de interesse”, de acordo com o advogado W. Michael Hensley, especialista em avaliação de honorários na Califórnia e que não tem envolvimento no caso de Spears.
QUESTIONANDO O PAPEL DE SEU PAI
Registros judiciais revelam as preocupações de Britney Spears no sentido de que seu pai dificilmente poderia ser considerado como a pessoa certa para definir, e aplicar, as regras que governam sua vida.
A primeira turnê de Spears sob tutela, “The Circus Starring Britney Spears”, deveria operar sob lei seca, com o elenco e equipe proibidos de beber álcool, ou mesmo bebidas energéticas, na presença dela, de acordo com três pessoas que participaram da turnê.
Durante o período, uma ex-babá e empregada doméstica de Spears disse que Jamie Spears se envolveu em “abusos verbais, ofensas, comportamento inapropriado e recaídas no alcoolismo”, de acordo com uma carta enviada em 2010 na qual ela ameaçava um processo judicial.
Em 2014, Ingham, disse ao tribunal que Spears acreditava que seu pai estivesse bebendo, de acordo com a transcrição de uma audiência fechada. Advogados que representavam a tutela responderam que Jamie Spears havia se submetido a testes regulares de consumo de álcool e que jamais tinha sido apanhado embriagado. O advogado de Britney disse que ele passou por um teste aleatório, e se recusou a fazer novos testes, definindo a solicitação como inapropriada.
“Absolutamente inapropriada”, a juíza declarou. “E quem é ela para exigir isso de qualquer pessoa?”
Ingham disse ao tribunal que sua cliente estava incomodada por suas preocupações não estarem sendo tratadas com seriedade. “Ela me disse, ao me dar essa lista, que antecipava que, como aconteceu antes, o tribunal simplesmente varreria as queixas para baixo do tapete e ignoraria quaisquer referências ao Sr. Spears”, declarou Ingham, de acordo com uma transcrição da audiência.
Ingham também mencionou o urgente desejo de Spears de encerrar a tutela de vez. Ela até havia mencionado a possibilidade de mudar seu estilo de vida e abandonar sua carreira, mas acreditava que a tutela não permitia que o fizesse, de acordo com uma transcrição.
Em resposta ao pedido de Spears pelo fim da tutela, a juíza declarou que, se ela estabelecesse uma relação saudável com um terapeuta e apresentasse um ano de resultados negativos de exames de drogas, consideraria a solicitação. Mas não garantiu o atendimento do pedido.
Os presentes, entre os quais a juíza e os advogados das duas partes, levantaram a possibilidade de que o namorado de Spears estivesse causando o descontentamento.
ATRÁS DE PORTAS FECHADAS
Em 2016, Spears lançou seu nono disco de estúdio e fez mais de 50 shows em Las Vegas. Mas em particular, ela voltou a contestar a tutela, de acordo com um relatório escrito por um investigador. (Nos casos de tutela da Califórnia, um investigador é encarregado de revisar periodicamente a situação para o juiz.)
Spears disse ao investigador que estava “muito zangada” com a maneira pela qual sua vida era dirigida, e descreveu a presença de seguranças ao seu redor o tempo todo. Ela também estava passando por numerosos testes de drogas a cada semana, e seu cartão de crédito ficava em poder de seus seguranças ou de um assistente, e só podia ser usado com autorização deles, o relatório apontou.
Spears queria mudar algumas coisas em sua casa, como a cor dos armários da cozinha, ela disse ao investigador, mas o pai a proibiu, dizendo que isso custaria dinheiro demais.
A imagem pública da vida de Spears oferecia poucas indicações sobre as dificuldades que ela enfrentava. Sua conta no Instagram a mostrava como acessível e brincalhona, e ela devia começar uma nova e lucrativa temporada de shows em Las Vegas em fevereiro de 2019.
Mas um mês antes da estreia, Spears anunciou um “hiato por prazo indefinido” em seu trabalho, e cancelou os shows. Jamie Spears havia “quase morrido”, depois de sofrer uma ruptura de cólon, de acordo com o comunicado, que dizia que os dois tinham um “relacionamento muito especial”.
No segundo trimestre daquele ano, Spears compareceu a uma audiência fechada e leu uma declaração. De acordo com uma transcrição, ela disse ter sido forçada a se internar em uma instituição de saúde mental, contra sua vontade, por motivos exagerados, o que ela encarava como punição por ter objetado a alguma coisa durante um ensaio.
Ela também disse que havia sido forçada a se apresentar com 40 graus de febre, e definiu a ocasião como um dos dias mais assustadores de sua vida. Spears fez uma lista de suas realizações recentes, entre as quais turnês e lançamentos de discos. Disse aos presentes que nada havia de errado com ela.
Uma transcrição da audiência foi liberada indevidamente, e porções de sua fala foram divulgadas pelo TMZ.
O terceiro trimestre daquele ano trouxe novos desentendimentos. Em agosto, houve uma suposta altercação física entre Jamie Spears e o filho de 13 anos de Britney. Nenhuma acusação foi apresentada, mas o pai do menino, Kevin Federline, conseguiu uma liminar que impedia Jamie Spears de ver seus filhos.
Duas semanas depois, Jamie Spears, invocando problemas de saúde, deixou sua função de tutor pessoal de Spears temporariamente, e foi substituído por um profissional licenciado. Mas continuou no controle do dinheiro da filha.
Em setembro de 2020, um burburinho de atividade no tribunal parecia ser uma indicação de que algo estava para mudar. Ingham apresentou documentos ao tribunal declarando que Spears “se opõe veementemente ao esforço de seu pai para manter sua disputa judicial escondida no armário, como um segredo de família”.
Ingham apresentou queixas sobre a gestão do dinheiro da cantora por Jaime Spears, afirmando que ele pagou honorários excessivos de mais de US$ 300 mil (R$ 1,5 mi) a Taylor, então gerente de negócios da filha. (No tribunal, um advogado de Jamie classificou os honorários como razoáveis.)
A disputa se arrasta, e as contas se empilham. Uma das estranhezas do sistema de tutela é que Spears paga pelos advogados das duas partes, entre os quais aqueles que argumentam contra ela no tribunal. Um dos grupos de advogados de Jamie Spears recentemente apresentou uma conta de US$ 890 mil (R$ 4,5 mi) por quatro meses de trabalho, o que inclui planejamento de mídia para defender a tutela.
Em uma audiência pública em novembro, a mãe de Britney apoiou que Jamie Spears seja destituído como tutor. Por meio de um advogado, ela descreveu a relação entre pai e filha como “tóxica”, e disse que era “hora de recomeçar do zero”, acrescentando que Jamie Spears havia definido a filha como “um cavalo de corrida, e é preciso tratá-la como um cavalo de corrida”.
Naquele dia, a juíza Brenda Penny, que substituiu Goetz no caso, recusou o pedido de Ingham para suspender Jamie Spears permanentemente de sua posição de tutor, mas deixou as portas abertas para que essa remoção seja reconsiderada no futuro. Penny aprovou uma empresa de gestão de patrimônio como segunda tutora do patrimônio de Spears, em companhia de Jamie.
Ingham não apresentou uma petição pela destituição permanente de Jamie Spears.
Spears recentemente voltou para sua cidade, Kentwood, onde prepara caldeiradas para os amigos e visita o bar da Veterans of Foreign Wars. Mas ele passa a maior parte de seu tempo sozinho. “É o mesmo velho Jamie”, disse Shaw, seu antigo treinador de futebol americano.
Jamie Spears recentemente vendeu a casa em que Britney cresceu. Ele estacionou seu motor home em uma estradinha sinuosa nas cercanias da cidade, ao lado de um armazém no qual guarda as relíquias encaixotados da carreira pop da filha.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci