Celebridades

'É claro que o motivo é a raça', afirma Naomi Campbell sobre preconceito na moda

'Jamais esperei conseguir coisas com facilidade', diz modelo, que fez 50 anos em maio

Guy Trebay
Nova York

Há tantas versões de Naomi Campbell que você nunca sabe qual delas vai encontrar. Há a deusa Naomi, cujos superpoderes confirmados (pergunte a qualquer testemunha ocular) incluem abrir caminho em meio a multidões e alterar a carga elétrica de qualquer aposento. Há a garota da capa Naomi, a Naomi das campanhas e a Naomi das passarelas, cujo andar durante os desfiles dificilmente será superado.

Há a Naomi vulnerável, um ser humano inesperadamente tímido que surgiu no panorama das modelos com apenas 15 anos de idade. Há a Naomi ativista, que chamava Nelson Mandela de vovô, e a Naomi sedutora, que porta um cinturão decorado com as cabeças de playboys e oligarcas. Há a Naomi coração de ouro, que não hesitaria em “lhe dar o vestido Prada que está usando”, como uma velha amiga comentou recentemente. E há a Naomi coração de pedra, que recusou ajuda a uma amiga que precisava de dinheiro para um tratamento de reabilitação por vício em heroína.

“Lutando desde que chegou, lutando para sobreviver”, é a descrição da agente de modelos Bethann Hardison Campbell, guia e protetora de Campbell por toda a sua vida, sobre a amiga. E a despeito das dificuldades com as desigualdades raciais que passaram despercebidas por muito tempo no mundo da moda, Campbell não só se manteve em posição de destaque por três décadas –anos-luz no ramo das modelos– como se reinventou, depois de meio século no planeta, como um fenômeno da mídia digital.

Seu programa, “Being Naomi”, é tanto fútil quanto hipnótico, em ritmo quase digno de Andy Warhol, e serve como uma aula magna para qualquer narcisista que aspire a criar uma marca. Campbell, nascida em Londres, recentemente completou 50 anos e se manteve ocupada durante e depois do "lockdown", na casa de um amigo em Los Angeles.

Ela compartilha seu regime diário de exercícios com Joe Holder, fundador da Ocho Rios, no Instagram, participa de reuniões virtuais de recuperação, tornou-se a primeira porta-voz da linha de maquiagem Pat McGrath Labs, e grava entrevistas “sem filtro” com amigos e colegas como Sharon Stone, Marc Jacobs e Cindy Crawford. Recentemente, ela fez um tutorial de beleza notável pela franqueza no canal de YouTube da revista Vogue.

Em uma conversa por telefone em um começo de noite de sexta-feira, nos primeiros dias de junho, Campbell falou sobre o que é de fato ser Naomi.

1. O preconceito inconsciente nunca foi inconsciente

“É claro que o motivo é a raça”, disse Campbell sobre o preconceito no mundo da moda, o que complicou a ascensão de criadores negros; segundo Anna Wintour admitiu recentemente, eles não receberam “espaço” suficiente em publicações como a Vogue.

“Mas jamais esperei conseguir as coisas com facilidade”, disse Campbell, uma mulher que o jornalista de moda André Leon Talley certa vez descreveu como “um ciclone de energia, estilo e drama surgido do nada”.

2. Ela lidou com isso da maneira usual

“Eu sabia que tinha de trabalhar mais que todo mundo, e quando penso sobre isso agora fico agradecida por ter contado com muitas mulheres fortes na minha família, que me mostraram como me manter forte física e mentalmente, se eu desejava sobreviver e prosperar”, disse Campbell. “Sempre fui criada, por minha mãe, por minha avó, pelas maravilhosas e fortes mulheres da minha família, por essas ancestrais fortes, para ter em mente que, o que quer que eu fosse fazer, precisaria dar 110% de mim”.

A linhagem de Campbell é uma combinação entre jamaicanos de origem chinesa e jamaicanos de origem africana. (Sua avó sino-jamaicana se chamava Pearline Ming.)

3. Mas não a defina como sobrevivente

“É adaptação”, ela disse. “Naquela época, eu me questionava: por que fazer aquilo se não era tratada como minhas colegas. Por que eu não recebia o mesmo pagamento? Por sorte contei com pessoas maravilhosas como Bethann a quem eu consultava e que me explicavam por que era vantajoso continuar trabalhando, e que eu veria os resultados em longo prazo”.

4. Talvez o melhor termo para ela seja “pragmática”

“Se eu achava que as coisas eram injustas, me sentia compelida a reclamar”, disse Campbell, cujo histórico quanto ao assunto não é assim tão cristalino. É verdade que ela foi uma das fundadoras da Black Girls Coalition, um grupo organizado para enfrentar as desigualdades raciais do mundo da moda. Mas é igualmente verdade que ela um dia tentou bloquear a carreira de uma novata chamada Tyra Banks.

“Isso tem a ver comigo, o que estou dizendo, com a minha carreira”, ela afirmou. “O ponto é tentar tirar o melhor da situação com que você está lidando. Não vejo o que aconteceu como sobreviver. Vejo como viver”.

5. Ela precisou contar com a caridade de desconhecidos

“Sou afortunada nas pessoas que tive em minha vida, as influências dessas grandes mentes, espíritos e seres”, diz a mulher cujo arquivo de cartões de visita –se as pessoas ainda guardassem essas coisas– precisaria ser transportado em uma carreta.

“Penso em Azzedine Alaïa e Nelson Mandela. Pude conhecê-los, conviver com eles, entendê-los, estar perto deles, considerá-los como parte da família. Você às vezes não percebe, quando as pessoas ainda estão aqui, que seria impossível pensar no planeta sem elas. E quando elas se vão, o pânico se instala repentinamente: o que faço agora? A quem recorro?”

6. Ela encontrou a espiritualidade, mas só depois de encontrar as drogas

“O que descobri é que surge uma força”, disse Campbell. “Todas as conexões que você fez, tudo que você teve com essas pessoas, retorna de outra forma. Elas ainda estão presentes e te ajudam a avançar. Quando Papa morreu, foi um grande choque”. Alaïa, o estilista tunisiano que serviu de figura paterna para Campbell durante toda sua carreira, morreu em 2017 aos 82 anos. “Fiquei realmente abalada”, ela disse.

“Mas então essa força surgiu de algum lugar, não sei bem, só posso dizer que veio dele. Compreendi que precisava fazer mais, ajudar mais, estar mais presente”.

7. Ela acredita no segundo A

“Tenho muito orgulho de minha recuperação, e me orgulho de estar em recuperação, e jamais ocultaria o fato”, disse Campbell, cujos acessos de raiva, muito divulgados, podem ter sido causados em parte pela dependência de drogas. Alexander McQueen costumava brincar com amigos que eles deviam esconder seus telefones, quando Campbell chegava para uma visita.

“Não devemos promover a recuperação, mas tampouco vou negar qualquer dessas coisas”, ela disse. “Isso me ajudou muito em outras áreas da minha vida”.

8. Os passos de um programa de 12 passos são mais que metafóricos

“Sou o tipo de pessoa que precisa de estrutura”, disse Campbell, cujo sentido de tempo é notoriamente peculiar e que, por exemplo, se atrasou duas horas para a sessão de fotos via Zoom para este artigo; um incidente famoso é sua rejeição pelo produtor e diretor Lee Daniels por chegar com três horas de atraso para uma audição (um incidente que resultou em gritaria e um convite para um papel em um filme, e se transformou em amizade duradoura).

Mesmo assim, ela deve ter um despertador gigante, porque conseguiu sair da cama em tempo para posar para as 300 capas de revista que enfeitou com sua imagem. “É assim que funciono melhor”.

9. Ela é a rainha da rotina

“Mantenho uma rotina durante a quarentena”, ela disse. “Acordo, rezo, tomo banho, me exercito. Em momentos como esse, você precisa daquela sensação de familiaridade e rotina para manter sua mente e espírito em um lugar seguro”. E também precisa, tomando por base o tutorial de Campbell para a Vogue, de um método infalível de produzir seu rosto em 10 minutos, com técnicas refinadas a ponto de causar inveja a Bianca Del Rio.

10. As autoridades da aviação deveriam contratá-la

“Não fiz aquilo para ganhar circulação viral”, disse Campbell sobre um vídeo de 2019 em que mostra seu ritual de limpeza de seu lugar no avião, e atraiu mais de 2,9 milhões de visitas no YouTube; ainda que as precauções que ela demonstra talvez possam ter parecido extremas, no passado, assistir ao vídeo deveria ser obrigatório para qualquer um que pretenda voltar a viajar de avião.

Campbell começou a usar máscaras rotineiramente no começo do século, em suas viagens de avião. “Eu via todo mundo usando máscara no Japão, e pensei que aquilo fazia sentido”, ela disse. Cerca de 15 anos mais tarde, sua metodologia passa perto de carregar consigo uma máquina esterilizadora (e ela já foi fotografada usando um traje de proteção completo).

“Eu imaginei que seria normal levar meus lenços de papel e limpar o assento todo, sem insulto à companhia de aviação”, ela disse. “Era o que eu precisava fazer para me sentir confortável”.

11. Ela compreende que onde quer que você esteja, é lá que você está

“O vírus, as vidas que ele tirou, é devastador, mas ficar imóvel, ficar no mesmo lugar, pode ser maravilhoso”, disse Campbell, que já orbitou o planeta mais vezes do que muitos satélites. “Se aprendi uma coisa em minha vida foi que não há como escapar das coisas. Temos de enfrentar nossos medos e viver nossas emoções”.

“Muitas coisas na vida não deram certo, para mim. E tudo bem. Pelo menos tentei. É bom poder se olhar no espelho, sem pressa e sem correria. Eu comigo mesma. No fim do dia, é preciso que você seja capaz de ficar sozinho consigo mesmo, ou não estará vivo”.

The New York Times

Tradução de Paulo Migliacci