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Como traficantes chineses ameaçam onça-pintada na América Latina

Conservacionistas lutam contra o crime organizado para proteger a espécie - BBC Brasil/ Science Photo Library

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Alejandra Martins

"Fiz uma promessa a mim mesmo de proteger as onças até o último minuto da minha vida", diz o guarda florestal Marcos Uzquiano, um dos chefes de proteção ambiental do Parque Nacional Madidi, uma das 22 áreas protegidas da Bolívia.

A luta dele e de seus colegas é um dos temas centrais do documentário "Tigre Gente", de Elizabeth Unger. O filme, que estreou recentemente no festival Tribeca, em Nova York, traz à tona um problema tão sério quanto complexo: o tráfico ilegal de partes de onças-pintadas da Bolívia à Ásia, principalmente à China.

Entre 2014 e o início de 2019, foram apreendidas cerca de 760 presas de onça-pintada, segundo a bióloga Ángela Núñez, que trabalha na Associação Savia, entidade de proteção ambiental da Bolívia. "Acredita-se que foram mortas pelo menos 200 onças, ou até mais, porque nem sempre eles conseguem obter as 4 presas (dentes caninos) de cada onça", diz Núñez.

Em apenas uma apreensão, em um restaurante operado por dois cidadãos chineses em Santa Cruz, foram encontradas 185 presas. E o serviço postal da Bolívia, Ecobol, encontrou cerca de 300 presas em 16 pacotes com destino à Ásia.

Um relatório de ONGs internacionais indica que as descobertas são a ponta de um iceberg que envolve organizações criminosas chinesas.

Esse tráfico ilegal ameaça não apenas o maior felino do continente americano, mas também a integridade daqueles que, como Uzquiano e outros guardas-florestais, arriscam suas vidas para protegê-los.

'NÃO ADIANTE DEMONIZAR OS CHINESES'

A documentarista americana Elizabeth Unger, diretora do filme, estudava biologia quando viajou para a Bolívia para trabalhar como voluntária em um centro de resgate de vida selvagem. A experiência contribuiu para sua decisão de não se dedicar à pesquisa científica, mas sim a criar documentários para expor problemas internacionais.

"Tigre Gente" mostra não só o problema do tráfico, mas a importância da onça-pintada na cultura local e em seu habitat. "Conservando a onça-pintada, conservamos todas as espécies de plantas e animais que convivem com ela, inclusive a humana, por todas as funções ambientais que esse sistema nos proporciona", diz a bióloga Ángela Núñez.

Unger espera que quem assistir ao documentário "capte a mensagem de que a onça-pintada é um animal incrível que deve ser salvo". Além de Uzquiano, outra protagonista central do filme é a jornalista chinesa Laurel Chor, que investiga o lado asiático do tráfico e as crenças culturais de quem compra esses produtos.

"Queremos mostrar que essa é uma questão complexa. Que demonizar a comunidade chinesa não resolverá o problema do tráfico ilegal de partes de onças nem reduzirá seu consumo. Pode ajudar a entender a mentalidade por trás da demanda", diz Unger à BBC Mundo.

A documentarista afirma que existem crenças errôneas no ocidente sobre o assunto. Uma delas é a de que a maioria da população da China consome produtos do tráfico ilegal de animais selvagens —o que não é verdade, é um público relativamente pequeno.

"Também é importante compreender que tradições muito antigas, passadas de geração em geração, por exemplo no uso da medicina tradicional, são um fator a ter em conta."

'ELAS SÃO A MINHA FAMÍLIA'

Uzquiano cresceu em Buenaventura, uma pequena cidade no coração da região amazônica da Colômbia. "Para mim, isso não é apenas luta por um animal, é algo muito mais profundo. Considero as onças minha família", diz Marcos Uzquiano, o chefe de proteção ambiental do parque na Bolívia.

"Desde a infância, a onça representa uma grande energia. Para mim, ela é força, é vida, é mito", diz ele à BBC Mundo. "Não havia médicos na cidade onde crescemos. O xamã, que para nós era o médico de família, nos contava histórias de pessoas que se transformavam em onças."

"Nas comunidades indígenas, a onça é conhecida como tigre. Meu sonho de criança era realmente me transformar em um tigre. O destino me levou a me tornar um guarda florestal para preservar a vida da onça e lutar contra o tráfico de presas", conta Uzquiano. A lenda deu o título ao documentário, "Tigre Gente".

ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

Os primeiros sinais do problema que o filme retrata surgiram quando conservacionistas locais ouviram mensagens em rádios comunitárias rurais. Os anunciantes procuravam presas de onça para comprar, apesar da captura e da comercialização de animais silvestres serem proibidas.

Em 2017, os biólogos Enzo Aliaga e Ángela Núñez publicaram um artigo alertando sobre o tráfico. Uma investigação na Bolívia entre 2018 e 2020 revelou a magnitude do problema. Realizada pela ONG Long Earth League International (ELI), em conjunto com o comitê holandês da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a investigação deu origem a um relatório publicado em 2020.

"O tráfico de partes de onças-pintadas não é apenas um problema de conservação, mas também de crime organizado", diz Andrea Crosta, cofundadora e diretora da ELI. "Os principais traficantes, todos da Ásia, também se envolvem em outros crimes graves e costumam estar ligados ao crime organizado".

Existem pelo menos três organizações criminosas (constituídas principalmente por cidadãos chineses) operando em território boliviano. Um dos grupos teria ligações com uma notória máfia de Hong Kong.

Os traficantes usam aeroportos e rotas terrestres mal protegidas, principalmente através do Suriname e da Guiana. A carne de onça-pintada também era vendida em dois restaurantes em Santa Cruz operados por estrangeiros.

"Compartilhamos com as autoridades bolivianas um relatório confidencial com nomes e informações importantes dos traficantes chineses mais atuantes no país", diz Crosta à BBC News Mundo.

ONÇA POR TIGRE

As onças são caçadas por suas presas, ossos, pele e órgãos genitais, que são usados ​​na medicina tradicional ou como amuletos ou joias. Crosta afirma que partes de onça são vendidas na China como se fossem partes de tigre, o animal originalmente usado nas tradições.

"É cada vez mais difícil encontrar tigres selvagens na Ásia e os clientes querem órgãos de animais selvagens, não de tigres criados em cativeiro", explica. Os grupos criminosos usam empreendimentos legítimos, como restaurantes, por exemplo, como fachada.

"Os mais importantes traficantes de animais selvagens que conhecemos na América Latina, do México à Bolívia —trabalhamos em sete países da região—, têm negócios legítimos não apenas para encobrir suas atividades ilícitas, mas também como fonte de lucro", diz Crosta.

Os caçadores na Bolívia podem vender uma presa a intermediários por menos de US$ 100 (cerca de R$ 515). O consumidor final na Ásia paga de US$ 900 (R$ 4.000) a US$ 3.000 (R$ 15,4 mil).

Segundo Enzo Aliaga, que atualmente dirige a diretoria de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia, o problema também atinge o Panamá, Peru, México, Guiana e outros países onde existe a espécie.

Há fortes suspeitas de que o Brasil, país com a maior população de onças (que nos países de língua espanhola são chamada de jaguares) no continente, também seja afetado.

PRESAS NO BOLSO

Um dos problemas, diz Crosta, da ELI, é que contrabandear partes de animais é mais fácil do que fazer o tráfico de animais vivos. "Contrabandear presas é extremamente simples porque são pequenos objetos que podem ser escondidos em qualquer lugar, como bolsos ou bagagem", afirma ela.

Quando se trata de grandes quantidades ou ossos, são escondidos em remessas de produtos como madeira. "A menos que você saiba onde procurar, é impossível encontrá-los", afirma Crosta.

Aliaga afirma que os traficantes fazem o transporte até em caixas de bombons. "Eles passam pelos controles do aeroporto porque o detector de metais não vai soar", afirma.

INVESTIMENTOS CHINESES

Um estudo sobre apreensões na América do Sul e Central, publicado em 2020 na revista Conservation Biology, analisou a relação entre a chegada à região de investimentos chineses, especialmente em projetos de infraestrutura, e o tráfico de partes de onças.

"Encontramos uma correlação consistente entre o nível de investimento privado chinês e o número de apreensões de partes de onças-pintadas, mas não de onças-pardas ou jaguatiricas, nossas espécies de controle. Neste estudo, no entanto, não avaliamos como a cooperação econômica pode facilitar o tráfico", afirma Thais Morcatty, pesquisadora da Oxford Brookes University, na Inglaterra, e uma das autoras do estudo.

"O número de apreensões aumentou significativamente na América Latina entre 2012 e 2018. Mas ainda não comprovamos que uma coisa causa a outra. Não podemos especificar se o aumento é causado pelo aumento do tráfico, resultado de maior monitoramento ou resultado de algum outro fator. Portanto, esses dados devem ser interpretados com cautela", diz ela.

"Em nossos registros, 34% das apreensões foram supostamente vinculadas à China como destino ou a cidadãos chineses. Os 66% restantes incluem comércio interno e tráfico internacional em que o país de destino não foi identificado", explica a pesquisadora.

A matança de onças também pode abrir a porta para o tráfico de outras espécies. "Já há evidências disso. Em um dos anúncios, há dois ou três anos, eles pediam abertamente chifres e genitais de veados e garras de tamanduás e ursos andinos", diz Aliaga.

Núñez acredita que as autoridades deveriam prestar mais atenção ao problema. "Sob o pretexto de 'ataques de onças ao gado', estão caçando onças, que provavelmente estão entrando no mercado negro para o tráfico de suas partes."

OUTRAS AMEAÇAS

Além do tráfico, as onças-pintadas enfrentam uma série de outros riscos graves —principalmente a destruição de seu habitat por causa do avanço agressivo do agronegócio, diz Enzo Aliaga, do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia.

"A pecuária extensiva e mal gerida está se expandindo, transformando florestas em pastagens", afirma Aliaga, do Ministério do Meio Ambiente da Bolívia.

Outro grande problema são os incêndios. "No maior incêndio de 2019 na Bolívia, cinco milhões de hectares foram queimados. Estima-se que milhões de animais morreram, provavelmente onças entre eles" afirma.

"As onças mal sobrevivem em circunstâncias tão adversas. Há conflitos com fazendeiros. As pessoas têm medo deles e os matam. A pressão sobre a onça ficou muito, muito forte. E eu temo que vai continuar crescendo", diz Aliaga.

AMEAÇA NO BRASIL

O tráfico das presas "parece potencialmente afetar as onças brasileiras", segundo Thais Morcatty, da Oxford Brookes University.

"Existem apreensões de partes de onça em que a polícia suspeitou de envolvimento com o tráfico internacional, e outros relatos por populações locais próximos às zonas fronteiriças de partes de onça que estariam sendo levadas a países vizinhos como Suriname, por exemplo, para serem exportados para a Ásia", disse ela à BBC News Brasil.

Segundo Morcatty, de acordo com último estudo publicado em 2018, o Brasil "tem a maior proporção de área protegida (66% da área de abrangência da onça-pintada)" entre os países latino-americanos, e "a subpopulação Amazônica é estimada entre 56 e 58 mil indivídiduos de onça-pintada".

A onça-pintada é uma das milhares de espécies que têm sofrido com a destruição de seu habitat no Brasil nos últimos anos, quando houve altas históricas do desmatamento. As onças também são alvo de caçadores brasileiros —que chegam a expor a matança de animais silvestres no Facebook e no Youtube.

O ICMBio, órgão do Ministério do Meio Ambiente, tinha um Plano de Ação Nacional para Conservação da onça-pintada, implementado em 2010, mas o programa foi encerrado em 2017 e nunca foi reativado. No momento o órgão é uma das entidades ligadas ao Ministério do Meio Ambiente que sofrem com corte de verbas e perda de funcionários.

AÇÕES NA BOLÍVIA

A Bolívia tem realizado diversas ações para tentar proteger a espécie em seu território, como a criação da Aliança Nacional para a Conservação da Onça-pintada.

Instituições governamentais, universidades, pesquisadores independentes e órgãos não-governamentais como a Wildlife Conservation Society, a Panthera e a Associação Savia Association, participam da aliança.

"A reserva de Madidi é a área protegida com maior diversidade biológica do mundo, um refúgio para muitas espécies ameaçadas, incluindo a onça-pintada", diz Rob Wallace, cientista da Wildlife Conservation Society que monitora as onças-pintadas na reserva há 25 anos.

O Ministério do Meio Ambiente da Bolívia também lançou um programa para proteção da espécie, que inclui a formação de juízes e promotores em parceria com a aliança. "As pessoas presas em flagrante delito foram libertadas por promotores que muitas vezes desconhecem a regra ou não a aplicam corretamente, ou foram condenadas a penas muito baixas", diz Núñez.

Aliaga diz que, dos mais de 20 processos criminais por tráfico de partes de onças, apenas três pessoas de cidadania chinesa foram condenadas à prisão, com penas de três e quatro anos. Aliaga acredita que as penas deveriam ser mais drásticas "porque os traficantes e caçadores sabem que se matarem o animal estarão livres em pouco tempo".

O plano também promove pesquisas sobre a situação do felino. Estimativas internacionais feitas com diferentes métodos colocam a população da onça-pintada na América entre 64 mil e 173 mil indivíduos. O grande desafio no país continua sendo a falta de recursos.

"Recebi a denúncia de que o tráfico continua em uma área muito remota, mas o problema é que a Diretoria de Biodiversidade é uma pequena diretoria em termos de pessoal e orçamento", diz Aliaga. "Tentamos trabalhar com a polícia ambiental, mas ela também é muito pequena, infelizmente."

Marcos Uzquiano disse à BBC Mundo que se orgulha de ser guarda florestal em Madidi e das iniciativas que surgiram na Bolívia, mas também ressalta a urgência em obter recursos.

"Somos 26 guardas-florestais e dois diretores de proteção em um parque de mais de 1,8 milhão de hectares. Isso, somado à falta de equipamentos, torna a tarefa árdua. O orçamento não é suficiente para cobrir as despesas operacionais, de combustível", afirma.

Os guardas relatam no filme sua preocupação com o risco crescente de se tornaram alvos dos caçadores.

'ENQUANTO HOUVER MERCADO...'

Aliaga diz que é preciso cooperação internacional. "Podemos continuar a luta aqui na Bolívia com penas mais duras, mas enquanto houver mercado, vai continuar", afirma.

Para a diretora do ELI, "os traficantes chineses na América Latina são o elo mais fraco do crime, a melhor oportunidade de interromper a cadeia de abastecimento ilegal".

"Infelizmente, nos sete países em que operamos atualmente, não conheço nenhum governo que consiga combater com eficácia essas redes de tráfico chinesas. As entidades ambientais não têm recursos, não têm o conhecimento específico e nem mesmo têm intérpretes chineses", afirma Crosta.

"Algumas dessas agências têm uma intenção genuína de enfrentar o problema, mas admitem que não têm o conhecimento prático para fazê-lo."

A maioria das áreas identificadas como prioritárias para a conservação do felino são áreas transfronteiriças, explica Rob Wallace. Uma onça-pintada pode ter um território de mais de 200 quilômetros quadrados."É absolutamente crucial que existam grandes áreas conectadas de habitat relativamente intacto", afirma Wallace.

"É importante também que sejam tomadas ações da IUCN, uma vez que já existe uma proposta de mudança da categoria da espécie, de espécie em situação menos preocupante para espécie ameaçada internacionalmente", dia a bióloga Núñez.

"Essa medida permitiria aos países tomarem mais ações em prol da conservação da espécie", diz. No final do filme "Tigre Gente", a jornalista Laurel Chor é vista dando uma palestra sobre conservação para crianças em Hong Kong.

Enzo Aliaga acredita que também é preciso melhorar a educação ambiental na Bolívia. "Quando os bolivianos começarem a aprender mais sobre a biodiversidade, acho que eles darão muito valor a essas vidas".

Marcos Uzquiano espera que "Tigre Gente" ajude a aumentar a conscientização sobre a necessidade de proteger a onça-pintada.

"Peço à população que volte seu olhar para as áreas protegidas, para a onça. Precisamos trabalhar como um povo unido ou essa luta não fará sentido. Nós, como guardas florestais, não conseguimos fazer isso sozinhos", diz ele. "Precisamos do apoio da população e do compromisso da comunidade internacional."