Factoides

Abra sua mente, classe média também é gente

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Quando Shakespeare escreveu a peça "O Mercador de Veneza", no final do século 16, colocou como vilão o agiota judeu Shylock, que exige do personagem principal, Antônio, "uma libra de carne" como caução de um empréstimo. O antissemitismo do texto --reflexo da época-- é contrabalançado pela fala em que o vilão diz que é um ser humano como os outros: "Os judeus não têm olhos? Não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? (...) Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos?".

Corta para o Brasil de 2013: vivemos a época perfeita para fazer uma adaptação da peça com a classe média no lugar do Shylock. Reparem: há preconceitos de sobra no país, odiosos em variados graus, mas esse contra a classe média é o único que pessoas bacaninhas consideram 100% liberado e exercem sem medo de serem felizes. Recentemente, elas ganharam o apoio da bacanérrima filósofa Marilena Chaui, que gritou EU ODEIO A CLASSE MÉDIA num evento quase como Gal Costa gritava MEU NOME É GAL nos anos 70.

Crédito: Divulgação Marilena Chaui vendo dois vultos (Classe e Média) se aproximarem do outro lado da ponte
Marilena Chaui vendo dois vultos (Classe e Média) se aproximarem do outro lado da ponte

Será que o ódio à classe média é uma forma socialmente aceitável de bancar o Justo Veríssimo do Chico Anysio ("tenho nojo de pobre")? Muitos pobres, afinal, têm os mesmíssimos preconceitos dos classemedianos, mas menos dinheiro para exercê-los, e você perde seu crachá de progressista ao criticá-los no atacado --o que aliás é justo (não Veríssimo, nesse caso) e deveria valer para qualquer crítica no atacado.

Alguns dirão que é apenas reação aos próprios elementos (meliantes, facínoras etc.; favor imaginar a voz do Datena) dessa classe média que leem revistas que a gente não curte, votam em partidos de que a gente não gosta e escrevem besteira à beça nas redes sociais. Eu respondo que essa é uma carapuça que não serve pra todo mundo, especialmente num estrato social que cresceu bastante nos últimos governos --a não ser que vocês achem que tá liberado estereotipar qualquer um que ganhe mais que R$ 291 por mês.

(R$ 291? Sim: oficialmente, segundo o governo, quem ganha isso por mês já está na classe média. Em vez de dizer "sorria, você está na classe média!" ao pedinte do seu bairro que consegue arrecadar essa quantia, melhor aconselhar o contrário: "Não melhora de vida, não, cara. Classe média é reaça, é bad trip, vai te tornar uma pessoa pior. Ou você fica milionário de uma vez ou volta a ser pobre, sim? Por favor.")

De todo modo, se você ainda acha que é a classe média que estravanca o pogreço do Braziu, eu tenho duas propostas:

1) Importar o antigo sistema de castas da Índia. Chega dessa palhaçada de mobilidade social, "subir na vida" etc.: quem é dalit (vi naquela novela da Glória Perez) passa a vida toda com a cara enfiada no ralo. E rebaixar, claro, a classe média a dalit, pra turminha ver o que é bom pra tosse.

2) Adaptar aquela sátira do Jonathan Swift sobre a fome na Irlanda e vender os filhos da classe média pra fazer faró, pra fazer faró, pra fazer farofa-fá: é saboroso, nutritivo e evita que eles cresçam e virem reacionariozinhos. Mãos à obra, moçada --não me decepcionem.


RUY GOIABA acredita que, assim como o inferno e o mau gosto, a classe média são sempre os outros. Considera-se, pelo critério do governo, um Eike Batista sem peruca e, se chamado de "classe média", reage batendo na mesa e gritando "é a mãe! É a senhora sua mãe!".

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