Tony Goes

Cauby Peixoto virou purpurina muito antes de morrer

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Cauby Peixoto quase não existia quando eu era adolescente, na década de 1970. Depois de um sucesso fulgurante em seu começo de carreira, o cantor vivia em semi-ostracismo. Pouco aparecia na TV e suas canções não tocavam no rádio. Suplantado pelo minimalismo da bossa nova, seu estilo barroco de cantar era considerado o ápice da cafonice.

Aí aconteceu uma coisa bonita: a própria MPB o resgatou. Muitos de nossos maiores compositores lhe enviaram canções inéditas, algumas compostas especialmente para ele. Foram todas gravadas no álbum “Cauby! Cauby!”, lançado em 1980 pela Som Livre —a gravadora do grupo Globo.

A repercussão foi imediata, e uma das faixas do disco —“Bastidores”, de Chico Buarque, uma das muitas que o autor escreveu de um ponto de vista feminino— tornou-se o novo carro-chefe de Cauby, ao lado da eterna “Conceição”.

Mas algo ainda mais interessante estava acontecendo. Exausto por ter cada milímetro de sua imagem controlado pelo empresário Di Veras, Cauby Peixoto chutou o pau da própria barraca. Com quase 50 anos de idade, ele adotou um visual espalhafatoso: cabelos encaracolados, ternos brilhantes e coloridos, maquiagem exagerada.

E não foi só o visual. Lembro de uma participação dele na “Discoteca do Chacrinha”, então exibida pela TV Bandeirantes, onde Cauby tirou uma chacrete para dançar. Desinibidíssimo, deitou a moça no chão e fingiu fazer amor com ela, numa cena que hoje “quebraria a internet”. Mas não enganou o Velho Guerreiro, que soltou em alto e bom som: “Caubicha!!”.

​O fato é que Cauby Peixoto jamais enganou ninguém. A partir dessa época, também parou de enganar a si mesmo. Continuou discretíssimo sobre sua vida pessoal: o público nunca ficou sabendo de um casinho sequer. Tampouco levantou bandeiras, como a defesa do casamento gay.

Mas esse silêncio era desmentido pelo “look” extravagante e pelo gestual afetado. Uma mensagem subliminar e subversiva captada até por crianças de colo. À sua maneira, do jeito que pôde, Cauby rompeu tabus e se posicionou politicamente.

E o público adorou. Os últimos 35 anos de sua carreira, iniciados com o “revival” de 1980, foram gloriosos. Cauby embarcou em infinitas turnês ao lado de Ângela Maria, regravou os repertórios de Roberto Carlos e Frank Sinatra, ganhou um musical em sua homenagem, lotou o Bar Brahma em São Paulo durante anos a fio. Tornou-se uma lenda viva.

Em 2015, já com mais de 80 anos de idade, finalmente deu o passo que ainda lhe faltava. Assumiu-se gay com todas as letras no documentário “Cauby - Começaria Tudo Outra Vez”, de Nelson Hoineff. Nem precisava, mas claro que foi bom ouvir de sua própria boca.

Cauby Peixoto foi mais do que um dos maiores intérpretes brasileiros de todos os tempos. Também foi um ícone, e um exemplo de como levar a própria vida sem se ater às convenções. E virou purpurina ainda em vida.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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