Tony Goes

Apropriação cultural: um penetra no baile da 'Vogue'?

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O baile de Carnaval da revista “Vogue” é o mais próximo que temos do Met Gala de Nova York. As diferenças, é claro, são muitas: a festa americana é beneficente (a renda reverte para o Instituto do Costume do museu Metropolitan) e cultural (marca o início da grande exposição anual organizada pelo instituto).
 
A festa brasileira é só um arrasta-pé promovido por uma publicação de moda. Mas os dois eventos têm algo em comum: um grande número de famosos usando figurinos bizarros.
 
A bizarrice se justifica ainda mais no caso do baile da “Vogue” porque, afinal de contas, se trata de um baile de carnaval. Mesmo assim, o tema escolhido para este ano não tinha como não gerar polêmica: “África Pop”.
 
Muita gente lamentou a escassez de convidados negros à festa. Este é um ponto importante, e, assim como no atual bafafá envolvendo o Oscar, a culpa não é só do organizadores. É da sociedade como um todo, que ainda não produziu celebridades negras num número que reflita a porcentagem de negros na população.

 


Outros tantos criticaram as fantasias em si, que fariam uma interpretação repleta de clichês da cultura africana. De fato, não se veem mulheres em Nairóbi ou Dakar portando peles de leopardo ou plumas de avestruz. Mas é bom lembrar que a festa da Vogue não tem nenhuma pretensão etnográfica: é um baile de Carnaval, ponto. Não exatamente um lugar de onde se deva cobrar correção política ou precisão histórica.

Mais contundentes são as críticas de ativistas negros sobre o que seria “apropriação cultural”. Antes de prosseguir, devo ressaltar que eu não sou negro e que não faço a menor ideia do que seja sofrer racismo. Mas sinto que o movimento negro vem escolhendo mal seus alvos nos últimos tempos. Como o seriado “Sexo e as Negas” (Globo, 2014), que foi apedrejado apesar de contar com quatro protagonistas negras --- enquanto que os elencos da maioria das novelas da emissora são compostos quase que só por atores brancos, e ninguém reclama.
 
É especialmente ridícula a alegação de que o uso de turbantes seria vedado a qualquer pessoa sem ascendência africana. Os turbantes já eram usados na Europa pelo menos desde meados do século 19, por influência não da África, mas do Império Otomano. E foram incorporados por dois ícones da cultura brasileira: Carmen Miranda e a Viúva Porcina, personagem da novela “Roque Santeiro” (Globo, 1985). “Proibi-los”, a essa altura, é tentar reescrever o passado.
 
O próprio conceito de “apropriação cultural” é bastante controverso. Porque, a rigor, o mundo inteiro é uma imensa apropriação cultural: da língua que falamos aos alimentos que comemos, quase tudo foi criado ou desenvolvido por uma cultura diferente da nossa. Manter uma pureza que nunca existiu rescende a Policarpo Quaresma —e, lembremos, ele teve um triste fim...

 

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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