Tony Goes

Peça cancelada em SP foi vítima do fundamentalismo do politicamente correto

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No ano passado, o seriado "Sexo e as Negas" (Globo) causou uma enorme polêmica antes mesmo de estrear. Por causa do título —uma referência à série americana "Sex and the City", estrelada por Sarah Jessica Parker— muita gente entendeu que se tratava de mais uma exploração do corpo da mulher negra, tratado como objeto pela cultura brasileira desde os tempos da colônia. O fato de o autor do programa (Miguel Falabella) ser um homem branco só piorou a situação.

"Sexo e as Negas" finalmente foi ao ar, focando em quatro personagens negras donas de seus próprios narizes (e do resto do corpo também). As tramas falavam de superação, preconceito e, sim, algum sexo, mas nem de longe eram a manifestação machista e racista que seus críticos anunciavam. Não adiantou muito: quem já tinha odiado antes de ver continuou odiando. E Falabella, amargurado, desistiu de escrever uma segunda temporada.

Há poucos dias, uma festa no Rio de Janeiro quase terminou em tumulto. O DJ Gustavo Calani começou a tocar "Fricote", o primeiro sucesso do baiano Luiz Caldas ("Nega do cabelo duro / que não gosta de pentear..."). Não conseguiu chegar até o fim. Foi interpelado por um grupo de pessoas furiosas, que exigiam que a música fosse imediatamente interrompida. Calani concordou para apaziguar os ânimos, e depois os organizadores do evento ainda publicaram um pedido de desculpas na internet.

Esta semana foi anunciado o cancelamento da peça "A Mulher do Trem", que teria uma única apresentação no próximo dia 12 no Itaú Cultural, em São Paulo. Seria o "revival" de um premiadíssimo espetáculo da companhia Fofos Encenam. A montagem original, em 2003, transcorreu sem maiores problemas.

Crédito: Divulgação Atores do grupo Os Fofos encenam usam maquiagem blackface na peça "A Mulher do Trem"
Atores do grupo Os Fofos encenam usam maquiagem blackface na peça "A Mulher do Trem"

Mas isto foi antes das redes sociais. Uma foto de divulgação da remontagem suscitou uma campanha negativa no Facebook. A tal da foto mostra dois atores usando o chamado "blackface": maquiagem para parecerem negros, uma técnica muito usada no começo do século passado. Que hoje, no entanto, é considerada racista por caricaturar os negros.

Acontece que "A Mulher do Trem" é toda uma caricatura, do começo ao fim. Personagens e interpretações não são realistas. Caracterizações exageradas satirizam alguns dos personagens clássicos das comédias de boulevard: o marido frouxo, a sogra megera, a empregada fofoqueira.

Só que o fato de não saberem do que se tratava, nem o contexto em que o texto foi escrito e nem a que a direção se propunha, não impediu que alguns internautas demandassem não só o cancelamento da peça como também um pedido formal de desculpas.

"A Mulher do Trem" não será mais exibida no dia 12. Mas, em seu lugar, o Itaú Cultural programou um debate envolvendo o elenco, representantes do movimento negro e até gente que protestou na internet. Uma solução inteligente, capaz de lançar alguma luz sobre o fundamentalismo do politicamente correto.

O racismo existe, e permeia a nossa cultura de maneiras insidiosa. Muitas vezes, quem não sofre com ele sequer o percebe. Mas, para extirpá-lo pela raiz, é preciso que todas as partes conversem entre si. Vivemos tempos em que as pessoas se sentem no direito de se ofender por qualquer coisa. Um pouquinho de diálogo, com o espírito desarmado, só pode fazer bem.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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