Tony Goes

O estranho "Recanto" de Gal Costa

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A crise da indústria fonográfica tem suas vantagens. Livres da obrigação de vender milhares de discos, já que ninguém mais compra mesmo, alguns artistas se permitem a experiências radicais.E algumas grandes gravadoras topam.

"Recanto", o novo CD de Gal Costa, está saindo pela "major" Universal Music, mas tem pegada de trabalho independente. Aposto que vai vender bem pouco: difícil imaginar o público mediano, que prefere a cantora de babas como "Chuva de Prata", se interessando por essa Gal eletrônica, esquisita, sem concessões.

Por trás de tudo isto está Caetano Veloso, e na frente também. Já se disse que "Recanto" é na verdade um disco de Caetano, a continuação natural de "Cê" e "Zii e Zie", apenas com Gal nos vocais. É verdade, mas também é verdade que quase todas as canções foram compostas por ele especialmente para ela.

Essas canções em si mesmas têm pouco de moderninhas. Soariam "normais" com arranjos mais convencionais, Mas Caetano anda serelepe desde que se separou de Paula Lavigne, e trabalhando direto com a turma de seu filho Moreno. Foram eles os responsáveis pela sonoridade mais rock dos últimos álbuns. São eles também que trouxeram uma grande dama da MPB para o século 21.

É sintomático como a eletrônica ainda não penetrou no "mainstream" da música brasileira. Nosso vizinhos na América Latina são menos puristas do que nós, que tanto nos gabamos da nossa miscigenação. Na Argentina, o eletro-tango existe há mais de uma década. No México, cumbias e rancheras convivem com sintetizadores há muito tempo. Por aqui, fomos pouco adiante do samba-rock.

"Recanto" tenta fechar essa lacuna. Caetano sempre gostou de inovar - e também de posar de inovador - e Gal sempre foi aberta a suas ideias. Aqui ela se mostra dócil aos comandos de seu grande amigo, mas merece todas as loas por não se acomodar nas fórmulas fáceis. Quem dera que uma Marisa Monte, por exemplo, tivesse o mesmo espírito inquieto.
Um trabalho experimental pode se dar ao luxo de errar, e nem tudo funciona bem em "Recanto". Há momentos ásperos, letras pretensiosas, imagens sonoras que surgem rasas quando se imaginavam espertas. Mas uma audição mais atenta revela uma tessitura riquíssima em detalhes e raízes muito bem fincadas na bossa nova. Seria um "easy listening" se fosse fácil de ouvir.

E o disco ainda fecha com uma faixa totalmente acústica, "Segunda", cujo título remete a "Domingo" a estreia de Caetano e Gal há quase 50 anos. Aqui toda a parafernália é desligada e trocada por instrumentos acústicos, inclusive prato e faca. O que não quer dizer que também não soa estranha: soa, e esta era a ideia. "Recanto" todo é um bicho raro. E talvez seja o melhor disco brasileiro do ano.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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