Celebridades

Prestes a completar 50 anos, Andrea Beltrão interpreta atriz sem talento em peça

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"Isso não é uma porta", diz Andrea Beltrão no aeroporto de Congonhas, olhando para a rua lá fora. Definitivamente não. Aquela parede de vidro que ela esperava que se abrisse à nossa frente enquanto se mexia inutilmente na expectativa de acionar um sensor automático não era uma porta. "Vem, eu te mostro", ela me puxa. "Isso é uma porta."

Problema e reação. Atores, sobretudo os cômicos, aprendem desde muito cedo, talvez por instinto de sobrevivência, a tirar proveito dos momentos fugazes, como esse, que abre um dia dedicado a aeroportos, táxis, entrevista, sessão de foto.

Logo de cara, fica claro: Andrea rebate a bola com o mesmo reflexo dos palhaços, improvisadores por excelência que são. Já dentro do táxi, não oferece um dropes. "Desculpe, é o último", defende-se, sem constrangimento, atrás de um olhar terno.


O jeito timidamente debochado, a falta de formalidade, a calça preta desgastada... Se há alguma preocupação, é a de não demonstrar preocupações. Bem à vontade, ela obedece com disciplina ao maquiador, à figurinista, ao fotógrafo. Posa em uma casa antiga, no bairro do Bexiga (centro de SP) hoje ocupada por uma galeria de arte. Veste uma peruca loira do tamanho de um bonde, trajes padrão rococó, colares de rock.

A sessão de fotos dura cinco horas, e ela não esboça nenhum sinal de cansaço, nenhuma restrição. Há uma pausa para sushis com Coca-Cola. Não é light. O papo com o maquiador vai parar na Papagaio, extinta boate do Rio em cuja pista ouvia-se de Abba a Lulu Santos no fim dos anos 1970. Ela frequentou.

Conversamos também sobre sua avó Cleonice, mulher "alinhada" que participou efetivamente de sua educação. "Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha dois anos e fomos morar com ela." Cleonice morreu em 1994, no mesmo ano em que também morreu o seu irmão. Ela foi filha única até os 11 anos, voltou a ser aos 30. Arthur, "alto e engraçado", teve um aneurisma aos 19. "Foi um ano devastador."

A atriz carioca, que faz 50 anos em setembro, não cogita plástica. Mantém a forma nadando entre 1.500 e 2.000 metros no mar, todos os dias. Sem filtro solar. "Olha, minha pele é toda manchada", exibe, com orgulho. Segundo Fernanda Torres, colega no seriado "Tapas & Beijos", "o corpo dela deveria ser doado à ciência para estudos. É uma das pessoas mais resistentes que eu conheço".

A NAMORADEIRA DO BRASIL

Desde o início de sua carreira, a ideia que lhe dá norte é a de "frescor". Zelda Scott, por exemplo, a jornalista descolada da série "Armação Ilimitada", ícone televisivo da geração anos 1980, namorava dois amigos, Juba (Kadu Moliterno) e Lula (André de Biase), ao mesmo tempo. "Ela fazia isso na maior categoria e sem constrangimentos", lembra a intérprete.

Exibida de 1985 a 1988 pela Globo, "Armação" fez "um puta de um sucesso entre as crianças", conta Andrea. "Elas corriam atrás da gente na rua." Zelda foi a primeira de uma longa lista de papéis similares, de mulheres muito, digamos, independentes.

A atriz se dá conta hoje de que "o papel da mulher galinha" a perseguiu. Mas talvez não seja exatamente esse o termo: "galinha" cai como um exagero. "Acho, na verdade, que as pessoas me associam à figura da mulher livre", ela se corrige, referindo-se a outras personagens de sua trajetória, como Ingrid, cujo amor foi compartilhado pelos três filhos da dona Armênia, na novela "Rainha da Sucata" (1990).

Fã do diretor Federico Fellini (1920-1993) e dos atores Giulietta Masina (1921-1994) e Marcello Mastroianni (1924-1996), ela se espelhou no despudor dos italianos para pular de papel cômico em papel cômico. "Eu gostaria de ter sido a Giulietta Masina. Já vi 'Noites de Cabíria' (1957) 80 vezes. 'A Estrada da Vida' (1954), 70. Mas não rolou, não sou a Giulietta, e tudo bem, vou imitando ela ao longo da vida", diz, a respeito da atriz que foi mulher de Fellini e que a inspirou desde o início.

Ela estreou profissionalmente ainda adolescente, aos 13 anos, em "O Auto da Compadecida" (1976), no tradicional teatro O Tablado, um dos maiores celeiros de jovens atores do Rio. Para Andrea, há traços de Giulietta também nas brechas dramáticas de sua carreira cômica. E há muitas delas, como Úrsula, maluquinha esotérica da novela "Pedra Sobre Pedra" (1992).

No teatro, fez Catherine, filha de um matemático esquizofrênico em "A Prova" (2002), montado dois anos antes na Broadway com a atriz Mary-Louise Parker. Levou um Prêmio Shell por seu trabalho. Atuou ainda em "Sonata de Outono" (2005), baseado no filme de Ingmar Bergman, de 1978. Mas, por ora, deixou o drama de lado. Ganhou seu segundo Prêmio Shell pela atuação na peça "As Centenárias" (2007), uma das muitas parcerias com Marieta Severo.

Interpretou a cabeleireira Marilda na série televisiva "A Grande Família", também com Marieta, além de Marco Nanini. E, desde 2011, é uma das protagonistas de "Tapas & Beijos", na Globo, empresa em que trabalha há 34 anos. "Prezo a proximidade com o mundo da TV. Sei o nome de todo mundo na Globo. O pessoal me sacaneia. Dizem que tenho um lado Maluf", diz, referindo-se ao político paulista, conhecido pela capacidade de decorar nomes, datas de aniversário e afins.

Depois da sessão de fotos, voltamos ao aeroporto e, sob o olhar curioso de garçonetes, ocupamos a mesa de uma lanchonete. Pedimos café, depois cerveja, depois misoshiro, depois duplas de sushis.

Quando fala de seu ofício, Andrea não menciona "intensidade da alma", "força interior" e outros clichês do gênero. Acha simplesmente que o bom ator é "aquele que faz com que o texto não pareça ser de outra pessoa". O pior ator, ela prossegue, em contraposição aos competentes, "é aquele que acha que é bom". O tipo convicto está retratado na peça que Andrea estreia no próximo dia 9, no Sesc Vila Mariana, com fortes cores caricaturais.

A personagem-título, interpretada por ela em "Jacinta", é "a pior atriz do mundo, uma portuguesa ruim de doer". Há o escudo do sotaque, diz a atriz, mas interpretar alguém sem talento pode resultar em algo "facilmente idiota", analisa. A peça, um musical, tem direção de Aderbal Freire-Filho, texto de Newton Moreno e músicas com melodia do titã Branco Mello. Boa parte da inspiração para compor o papel veio de observar figurantes de TV. "Tenho uma tara por eles. Fico curiosa para saber por que a pessoa está ali, onde ela mora, a que horas acorda."

Andrea gosta do momento "em que o figurante tem a chance de aparecer", ou de quando dizem para ele: "Vem cá, você: entrega para ela essas flores". "Às vezes, o cara congela num grau...", diz. "Fico olhando para ver como é que ele vai resolver o problema. Ele não é ator, sonha com aquilo, mas não sabe fazer. Isso me alimentou", explica a atriz. "Me inspirei mais no figurante do que em atores profissionais fazendo mal um papel. Isso a gente vê toda hora, né?"

Segundo Fernanda Torres, Andrea é "a atriz mais preparada da minha geração, pode fazer de musical a tragédia grega. Estudou canto na surdina durante anos e canta belissimamente em 'Jacinta'". A parceria com o pernambucano Newton Moreno, 45, dramaturgo egresso de um cenário experimental em São Paulo, autor de peças regionalistas como "Agreste", foi uma das muitas indicações de Marieta. "Ela tem olhar clínico, tem uma antena sempre ligada, sempre encontragente talentosa", diz Andrea.

Crédito: Miro/Fujocka/Photodesign Andrea Beltrão em ensaio exclusivo para a revista Serafina
Andrea Beltrão estreia o musical "Jacinta" no Sesc Vila Mariana, com direção de Aderbal Freire-Filho e texto de Newton Moreno

AÇÃO ENTRE AMIGOS

A aproximação entre as duas atrizes aconteceu durante a temporada da peça "Estrela do Lar" (1989). "Estávamos em cartaz no Copacabana Palace, e Marieta tinha um camarim só para ela. Ela era a protagonista, a produtora e, enfim, a Ma-ri-e-ta-Se-ve-ro", zomba. "Um dia, perguntou se eu não queria dividir o camarim com ela. Disse que não gostava de ficar sozinha, queria alguém para conversar."

Marieta, 66, trouxe o marido, o diretor Aderbal Freire-Filho, 71, para a amizade. Formou-se então o grupo que construiu, com recursos próprios, em 2005, o pequeno Teatro Poeira, hoje com duas salas dedicadas a peças experimentais, no bairro carioca de Botafogo.

As tarefas lá dentro foram divididas assim: Marieta ajuda em algumas produções, Aderbal "é o curador, é Deus", brinca. "Ele fica lá pirando, pensando em projetos maravilhosos, e a gente fica capinando. E é assim mesmo que a gente gosta." Andrea é a contadora.

Esse trabalho tem a ver com seu espírito metódico, ela diz. Em casa, procura "aceitar" desordens do marido, o cineasta Maurício Faria, e dos três filhos de nomes singelos (José, 12, Rosa, 16 e Francisco, 18), sem se estressar. "Sou organizada demais. De vez em quando, jogo um sapato no meio da sala para sentir que sou capaz de aceitar bagunça."

NOVES FORA

Se ela assim diz, melhor dar o benefício da dúvida. Mas como faz uma sujeita organizada como ela para lidar com seu próprio jeitão atabalhoado? Só durante o dia que passamos juntos, vários pequenos episódios contrastam com essa afirmação. Alguns exemplos:

1- "Ei, onde coloquei minha bolsa? Onde coloquei minha bolsa?" (estava ao seu lado, onde ela tinha colocado)

2 - "Não uso isso nem morta" (referia-se ao balcão de autoatendimento, no aeroporto, antes de voar para o Rio de Janeiro. Preferiu o balcão tradicional).

3 - Dois cafés chegam à nossa mesa. Andrea faz um movimento brusco com o braço, e a bebida encharca um dos pires sobre a bandeja. Sem pestanejar, puxa o café derramado para si.

Aderbal Freire-Filho acha que esse contraste, entre o metódico e o estabanado, costura um ponto comum entre Andrea e Marieta. "Os camarins delas são muito parecidos", ele avalia. "Elas gostam de enchê-los de coisas, fotos, por exemplo, mas deixam tudo sempre muito organizado." "A Andrea está sempre com um caderno, ela anota tudo o que eu falo em ensaios, é uma coisa maluca", diz o diretor.

A disciplina, os estudos e a dedicação, mais tarde, se desfazem em cena numa fuga para uma espécie de enlouquecimento. "Acho que ela tem esse perfil de colocar as coisas em clarividência e, sobre o palco, abstrair em direção à loucura."

Exemplo 4 (o melhor de todos) - No aeroporto, desencanada do relógio, quase perde o embarque. Alertada sobre a hora, engole cinco sushis às pressas, levanta-se, joga um tchauzinho para as garçonetes, vira-se para correr e dá de cara com um pilar.

Sem perder a piada, disfarça o constrangimento com uma dança estranha e sensual, olha para trás para ver a reação do "público" e só então sai correndo. Dessa vez, pelo menos, acerta a porta de vidro que dá para o seu portão de embarque.

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