Celebridades

'Personal trainer não me dá ginástica de idoso', conta Gal Costa

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Lá estava ele, com seu macacão laranja brilhante, tocando uma guitarra vermelha. Na plateia, uma garota de nariz arrebitado tenta captar cada movimento com sua super-8, recém-comprada. As imagens ficam tremidas, fora de foco. "Eu não sabia mexer na máquina, não saiu nada, só o show do Jimi Hendrix sem som...
E, logo depois, ele morreu... Fiquei muito chocada com aquilo."

Era agosto de 1970. Gal tinha ido a Londres visitar Gil e Caetano, exilados pela ditadura que recrudescera com o AI-5. Junto com as mulheres deles, Sandra e Dedé, amigas desde sempre de Gracinha, foram ao Festival da Ilha de Wight, onde acamparam em duas barracas.


A principal atração era Hendrix, que morreria no mês seguinte, aos 27 anos. Viram quase todos os shows, entre eles os de Miles Davis, Leonard Cohen, The Doors e The Who. No
último momento, foram escalados para tocar, de improviso, no segundo dia do festival. Quem viu disse que botaram fogo na plateia.

A câmera e as imagens se foram. Ficou o espírito, a confirmação de que tudo era possível. E algumas fotos. Uma delas ganhou novo sentido recentemente. Mostra os jovens Gal e Caetano numa boa, cabelos entrelaçados. Está na contracapa de "Recanto", disco que marca a volta da cantora à experimentação, à ruptura. Eletrônico, minimalista, estranho, "Recanto" surpreendeu.

A aventura originou também o premiado show "Recanto Ao Vivo", que agora sai em CD e DVD. Uma turnê de 12 apresentações na Europa também está programada. A partir de
julho, Gal e sua banda vão para França, Alemanha, Holanda, Itália, Portugal, Suíça e Israel. "E tem um convite pro Japão, mas não sei como está essa história." Antes, no próximo dia 15, voltam a tocar em São Paulo.

Quando foi propor o desafio/convite para "Recanto", Caetano começou a falar e... "Eu topei logo de cara, sem nem saber o que era", conta. Gal achou que demoraria ainda um ano para que ele mandasse as novas canções, "mas que nada, cara, todo mês ele me mandava músicas em MP3, e eu me encontrava com o Moreno para ver o tom, com voz e violão, e aí mandava pro Kassin fazer a base. Foi assim".

Caetano e Moreno, seu filho mais velho, também dirigiram o show. O set list mistura grandes sucessos na voz de Gal, como "Folhetim", "Força Estranha", "Meu Bem, Meu Mal", "Modinha para Gabriela" e "Baby", com as músicas novas, entre elas a irônica "Autotune Autoerótico" e o divertido funk "Miami Maculelê".

VIDEORRETRATO DE GAL COSTA PARA A SERAFINA:


Assista ao vídeo em dispositivos móveis

GAL, GIRL

Dona de enorme extensão vocal e precisão rítmica, a que alia uma incorporação magnética das letras, Gal é, provavelmente, a maior cantora brasileira. Sua voz pura, define Caetano, é capaz de transportar o ouvinte para outros mundos. Mas não tem afetação de diva ou rainha. Distraída de sua maior importância, não traz maquiagem no rosto e muito menos na conversa: é natural como uma menina (Gal, afinal, era um jeito descolado de pronunciar "girl").

Nela, convivem a mansa sabedoria acumulada em 67 anos bem vividos e a curiosidade constante de quem nunca se acomodou: "Eu quero ser uma velha de 80 anos subindo a ladeira". Os companheiros de banda, assim como boa parte do público que tem lotado os shows, são relativamente jovens. Domenico Lancellotti, 41, Bruno Di Lullo, 28, e Pedro Baby, 34, interagem com Gal como se tivessem a mesma idade. E, de certa forma, têm.

A impressão é que Gal atravessou o tempo sem que o tempo fosse.

E não é que o ignore. "Eu me preservo, não faço mais as farras de antigamente. Faço ginástica para manter uma boa condição física para o meu canto. O personal trainer diz que não me dá ginástica de idoso, não. E gosto de desafio: se são dez, faço 12. Se são 12, faço 15."

Os cabelos continuam os mesmos, fartos e negros como um véu selvagem e secular (a peruca ruiva ela botou a nosso pedido). Mas a voz mudou: "Ganhei os graves e não perdi os agudos. Tanto que imito o Tim Maia no tom que ele gravou".

Ela se refere à balada "Um Dia de Domingo", que gravou com Tim, em 1985, e que fez enorme sucesso. No final do show atual, arranca risos da plateia ao encarar o vozeirão do finado amigo. "É uma homenagem, mas é para ser engraçado. Eu nem imito muito bem", diz.

Para gravar esse DVD, Gal voltou ao mesmo palco do espetáculo "Gal a Todo Vapor", o Teatro Tereza Rachel, hoje Net Rio. Dirigido pelo poeta Waly Salomão (1945-2003) em novembro de 1971, gerou, um mês depois, um álbum duplo que é talvez seu disco mais adorado e influente. "Nesse novo trabalho, revivo todas as 'gals' que habitam em mim."

Lembra, divertida, que o Tereza Rachel "era um poleiro". Lá se encontravam as figuras mais coloridas da geração do desbunde e das chamadas "dunas da Gal", o posto na praia de Ipanema onde "tudo era liberado". A música mais emblemática daquele show, "Vapor Barato", de Salomão e Jards Macalé, também é cantada em "Recanto Ao Vivo".

Curiosamente, como o próprio título sugere, "Recanto" se liga ainda a "Cantar", disco de 1974, também produzido por Caetano, em que ela rompia com o estilo mais gritado dos anteriores. A orientação para "Recanto" também foi a de amaciar a voz,
deixá-la "joãogilbertiana".

João Gilberto sempre foi sua maior influência. Mas, antes mesmo de ouvir o mestre baiano, já estava com o destino traçado. "Minha mãe queria um filho músico. Ouvia música clássica quando estava grávida e se concentrava para o nenê ouvir... E eu ouvi, né?"

Conta também que Daniel Filho a convidou para interpretar Gabriela, papel que acabaria sendo de Sônia Braga, na novela de 1975, em que cantava o tema de abertura. "Fiquei com medo, achava que não ia dar conta de ser atriz. Hoje, eu sei que daria. Eu era a própria, não precisaria nem atuar", ri.

Gabriel, seu filho de sete anos, parece querer seguir seu caminho. "Ele está tocando violão, é muito musical. Quem sabe dá tempo de ele me acompanhar um dia?" Possivelmente, o acontecimento mais importante de sua vida foi essa adoção. "Nunca engravidei, achava estranho. Aí, descobri que tenho as trompas obstruídas. Mas sempre quis ser mãe. É uma bênção ter filho. Sou louca por ele", conta. "Antes, eu achava que, para amar um filho, você tinha que parir. Tem que parir nada. Tem muita mãe que pare filho e não está nem aí. É preciso amar, o grande cordão umbilical entre uma mãe e um filho é amor. E tenho isso com meu filho." Gal cria Gabriel sozinha. "Não tô casada e acho ótimo." E acrescenta, com ar maroto: "Um namoro aqui e outro acolá, tudo bem".


TANGUINHA SUBVERSIVA

A sensualidade dela sempre foi espontânea. Sobre o show "O Sorriso do Gato de Alice", dirigido por Gerald Thomas em 1993, no qual, ao cantar "Brasil", de Cazuza, mostrava os seios ao mesmo tempo em que pedia que o país mostrasse sua cara, diz ter pena de o espetáculo ter ficado marcado por essa polêmica "boba".

E acrescenta: "Mostrar os seios, barriga e tudo sempre fez parte da minha carreira, é uma coisa corriqueira". De fato, em 1985, um mês antes de completar 40 anos, ela já tinha posado nua para a revista "Status".

Bem antes, em 1973, ela havia mostrado os seios na contracapa do álbum "Índia", que, por isso, foi censurada, assim como a capa, que trazia um close frontal de seu quadril com uma tanguinha. "Só liberaram o disco com invólucro de plástico preto. O pessoal comprava, abria e tirava [risos], coisa mais ridícula."

De "Recanto Ao Vivo" ficaram de fora seus sucessos mais festivos, ligados a uma fase de enorme êxito popular, como "Festa do Interior", "Balancê", "Pegando Fogo" e "Açaí". Em compensação, "Divino Maravilhoso", música que representou a primeira ruptura na sua carreira, está no show.

Animada, lembra esse novembro de 1968. "Caetano e Gil me deram 'Divino Maravilhoso' para cantar no Festival da Record. Gil perguntou como eu queria cantar. Eu amava Janis Joplin e falei: 'Quero cantar como nunca cantei antes, pra fora, uma coisa extrovertida, forte'. Caetano não sabia nada. Foi ver. De repente, apareço com aquele cabelo, aquela roupa cheia de espelhos e cantando daquele jeito... Ele me disse que quase caiu duro."

Legal, tropical, plural, total e principalmente et cetera e tal... É impossível ouvir essa tônica de duas letras e não pensar em Gal. Não à toa, percebe-se claramente sua influência no trabalho de novas cantoras. Destas, ouve Céu, Tulipa e sua preferida, Roberta Sá. "Ela canta muito bem, samba, bossa nova, eu me reconheço no canto dela."

Gal não liga muito para guardar coisas, nem os discos. Ouve música no YouTube e no iPod. Gosta especialmente da Björk, que a "tira do sério", no melhor dos sentidos. Mora em São Paulo, cidade que adora. Recentemente se apresentou com Daniela Mercury na Virada Cultural da capital paulista. "Achei bonita a maneira como ela se assumiu, muito espontânea, verdadeira, natural."

Fez análise durante dez anos. O período pesado mesmo foi debaixo da mão de ferro dos militares. "Eu segurava uma onda danada. Tenho uma coisa meio inocente, talvez por isso não chegassem a mim com violência. Os anjos, Deus, os orixás, uma energia qualquer me colocou ali como instrumento de resistência, para que eu pudesse proteger as pessoas que eu amo." De certa forma, é o que continua fazendo.

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